São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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NOVA FÉ
Há cada vez mais praticantes de uma das religiões mais difamadas de nossa era
Islamismo ganha mais adeptos entre ocidentais

PAUL VALLELY
do "The Independent"

A história de Kathleen é uma que gostaríamos de imaginar ser típica. Depois de formar-se enfermeira e parteira, em Dublin, encontrou emprego num hospital no Egito. Lá conheceu um médico egípcio, casou-se com ele e tornou-se muçulmana. Conversão por motivo de casamento. Está dentro dos limites do que consideramos "aceitável".
Mas o caso de Kathleen não é representativo. O islamismo é cercado de estereótipos, muitos deles sem fundamento, e esse é um deles. A história do contingente de ocidentais que estão se convertendo à religião de Maomé -pequeno, mas em constante expansão- diz algo a nós todos.
Vivemos numa era de apreensão coletiva. A incerteza econômica, a instabilidade no trabalho e a dissolução das famílias submetidas às pressões do mercado difundem um sentimento de insegurança. De alguma maneira estamos cansados do materialismo e do pensamento científico que, pouco a pouco, nos roubaram o senso de mistério e o significado da vida. Assim, estamos nos acostumando à idéia de que, em nossos tempos sincréticos, cada vez mais pessoas embarcam numa busca espiritual. Mas o que é que atrai tantas delas à religião possivelmente mais difamada de todas em nossos tempos?
Kathleen Roche-Nagi (seu sobrenome é metade irlandês, metade egípcio, refletindo sua história pessoal) fazia parte de um grupo de brancos convertidos ao islamismo que conheci recentemente na Fundação Islâmica de Markfield, perto de Leicester.
Batool al-Toma, uma irlandesa que antigamente se chamava Mary, conta que a maioria dos neófitos tem entre 35 e 55 anos de idade. Com seus traços largos acentuados pelo "hijab" (véu islâmico que recobre sua cabeça), a aparência de Batool remete à da freira que ela pensava se tornar, quando jovem.
"Muitos já têm filhos crescidos ou então são viúvos ou divorciados", disse ela. "Ou, ainda, se preocupam seriamente com a decadência da sociedade. Acham que tem de haver um caminho melhor."
Não existem estatísticas referentes ao número de convertidos no Reino Unido, mas em Markfield a média é de 80 novos convertidos por ano. Eles se interessam pelo islamismo depois de estudar arte, arquitetura ou línguas islâmicas, visitar um país muçulmano ou simplesmente conhecer muçulmanos. "Muito poucas pessoas se convertem devido ao casamento", disse Batool.
Os homens que se convertem ao islamismo vêm de diversos tipos de passado, mas um elemento comum à maioria das novas muçulmanas é o fato de anteriormente terem sido católicas. "Fui criada como católica praticante. Ensinaram-me que qualquer outra religião, fora o catolicismo, era muito estranha", contou Kathleen Roche-Nagi. "Hoje, porém, constato que minha prática do islamismo não é muito diferente do que era minha prática do catolicismo."
As conversões não podem ser atribuídas apenas ao anseio por uma estrutura de teologia e valores fixos. Vários dos ex-católicos optaram pelo islamismo por estarem insatisfeitos com as mudanças promovidas pelo Segundo Concílio Vaticano, cuja autorização para que as missas fossem realizadas na língua vernácula, em lugar do latim, simbolizou uma revolução no modo de interação da igreja com o mundo moderno.
"Eu me sentia um pouco traída pelo catolicismo. Os parâmetros mudaram", disse Batool. "Foi ficando difícil, na religião católica, definir o que constitui pecado. Quando eu era criança me ensinaram a jamais mastigar a hóstia e a tomar muito cuidado para não deixar que caísse no chão. Depois, passaram a colocá-la na nossa mão. As regras viviam mudando. A religião não deve mudar para adaptar-se às pessoas. Se ela é a religião revelada por Deus aos homens, somos nós que devemos mudar para nos adaptar a ela."
Tudo isso nem sempre agrada aos familiares e amigos, mesmo que compartilhem o mesmo temperamento religioso conservador. "Quando eu era menina, queria ser freira", disse Batool. "Minha mãe não gostou da idéia -achou que eu estava me precipitando. Acho que agora ela se arrepende de ter sido contra."
A reação de pessoas de fora às vezes é ainda mais problemática, especialmente com relação às mulheres que usam o véu islâmico. A hostilidade dos brancos se expressa na forma de perguntas agressivas como: "Por que você usa esse trapo velho na cabeça?".
O véu tem suas vantagens. Batool recorda que certa vez passou sem dificuldades por uma barreira policial na Irlanda, apesar de estar com dois homens muçulmanos no carro. Os policiais pensaram que ela era freira do convento local.
Mas a grande maioria da população ainda não aceita a idéia de uma muçulmana branca. "Quando você adota o véu, as pessoas passam a falar com você como se fosse surda ou burra", disse Batool. "Nos tratam como se fôssemos estrangeiras", explicou Sarah.
A raiz dessa reação está na visão ocidental padronizada do islamismo como fonte de machismo, de extremismo político e de barbarismo legal.
É uma visão que os brancos convertidos ao islamismo não reconhecem. E eles rechaçam seus três pontos de acusação principais: misoginia, fundamentalismo e primitivismo jurídico.
"Essa idéia de que o islamismo reprime as mulheres não passa de ficção da mídia", disse Kathleen, em tom de desprezo.
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Tradução de Clara Allain



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