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COMENTÁRIO
Bush e Saddam, divorciados da realidade
MAUREEN DOWD
DO "NEW YORK TIMES"
O que é terrível é que George W.
Bush e Saddam Hussein estavam
ambos olhando para o mesmo espelho rachado. Graças a David
Kay, agora temos uma imagem
espantosa do presidente e do ditador, ambos divorciados da realidade no que diz respeito às armas,
olhando feio um para o outro desde lados opostos de um universo
bizarro e paranóico no qual a ficção passou por cima da realidade.
Seria como uma sátira maluca
estrelada por Peter Sellers, não
fosse o fato de tantos iraquianos e
americanos já terem morrido.
Esses dois candidatos a durões
se dispuseram a ir muito longe
para mostrar que não se deixariam pressionar. Seus subordinados, em quem confiavam plenamente, os induziram ao erro com
informações fantasiosas sobre
programas de armas iraquianos
avançados, informações essas nas
quais acreditaram porque eram o
que queriam ouvir.
Saddam se deixou levar enquanto escrevia seus romances, e
Bush se deixou levar pela emoção
de reescrever o final da Guerra do
Golfo de 1991 de modo a, desta
vez, aniquilar os bandidos que
tentaram matar seu pai.
Tanto Bush quanto Saddam tinham exemplares de ""Crime e
Castigo". Condoleezza Rice deu o
livro a Bush quando ele viajou à
Rússia, em 2002, e Saddam estava
acompanhado de Dostoiévski no
buraco em que se escondia das
forças americanas. Mas nenhum
deles compreendeu a lição do livro: que você não pode se considerar acima da lei apenas por
achar que é superior.
Quando Kay disse, sobre as armas de destruição em massa, que
"estávamos todos enganados,
provavelmente, e isso é altamente
perturbador", tanto os EUA
quanto o Iraque descobriram
que, quando você se esforça demais para controlar a imagem da
realidade, corre o risco de perder
contato com ela.
Kay defendeu a guerra com o
Iraque, dizendo que os EUA
"muitas vezes já entraram na
guerra certa pelo motivo errado",
e defendeu Bush, dizendo que, "se
alguém foi atrapalhado pela inteligência, esse alguém foi o presidente".
Não há dúvida de que a CIA tem
muito a explicar. Pelo preço irrisório de US$ 30 bilhões por ano,
nossos ases da inteligência têm
cometido erros espetaculares.
Eles não nos avisaram sobre o 11
de Setembro com antecedência e
não captaram a espiral da vergonha que envolveu Saddam, já com
as faculdades prejudicadas e sendo enganado por seus cientistas.
Eles provavelmente confiaram
demais nos contos das mil e uma
noites de Ahmad Chalabi, então
líder dos iraquianos no exílio, ansioso por espalhar a notícia da
imaginária ameaça das armas
com ogivas nucleares de Saddam
porque isso atendia a seus próprios interesses e aspirações -e
aos de seus amigos no Pentágono.
Entretanto, enquanto se afasta o
mais rapidamente que pode das
afirmações que fez sobre as armas
iraquianas, Bush não chega perto
de responder por seus atos. Afinal, estamos num ano eleitoral.
David Sanger, do "Times", relatou um debate no governo "sobre
se Bush deveria ou não pedir,
num prazo curto, algum tipo de
reforma do processo de coleta de
inteligência. Mas as autoridades
disseram que os assessores de
Bush estão à procura de uma fórmula que lhes permita reconhecer
os problemas de coleta de informações sem atribuir a culpa" à
CIA ou a sua direção.
O presidente quer agir como se
tivesse um problema, mas não
um escândalo, coisa que ele pode
consertar sem cortar cabeças
-daqueles que cometeram erros,
honestos ou desonestos, fraudando a inteligência.
Dick Cheney, que declarou que
Saddam tinha capacidade nuclear, resolveu continuar a afirmar o que sempre disse, mesmo
enganado.
O vice-presidente fez pressão
para afastar os aliados e a ONU e
partir para a guerra em parte porque achava que bater num ditador enfraquecido, como Saddam,
assustaria outros ditadores. Ele
deve ter achado que, uma vez Saddam derrubado, o dia de prestação de contas finais sobre as armas nunca chegaria.
Então a ousadia e o atrevimento
devem ter ganhado nova definição na terça-feira, quando Cheney, exibindo um ar mais infalível
que o do papa, deu ao pontífice
uma pomba de cristal.
Tradução de Clara Allain
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