São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

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COMENTÁRIO

Bush e Saddam, divorciados da realidade

MAUREEN DOWD
DO "NEW YORK TIMES"

O que é terrível é que George W. Bush e Saddam Hussein estavam ambos olhando para o mesmo espelho rachado. Graças a David Kay, agora temos uma imagem espantosa do presidente e do ditador, ambos divorciados da realidade no que diz respeito às armas, olhando feio um para o outro desde lados opostos de um universo bizarro e paranóico no qual a ficção passou por cima da realidade.
Seria como uma sátira maluca estrelada por Peter Sellers, não fosse o fato de tantos iraquianos e americanos já terem morrido.
Esses dois candidatos a durões se dispuseram a ir muito longe para mostrar que não se deixariam pressionar. Seus subordinados, em quem confiavam plenamente, os induziram ao erro com informações fantasiosas sobre programas de armas iraquianos avançados, informações essas nas quais acreditaram porque eram o que queriam ouvir.
Saddam se deixou levar enquanto escrevia seus romances, e Bush se deixou levar pela emoção de reescrever o final da Guerra do Golfo de 1991 de modo a, desta vez, aniquilar os bandidos que tentaram matar seu pai.
Tanto Bush quanto Saddam tinham exemplares de ""Crime e Castigo". Condoleezza Rice deu o livro a Bush quando ele viajou à Rússia, em 2002, e Saddam estava acompanhado de Dostoiévski no buraco em que se escondia das forças americanas. Mas nenhum deles compreendeu a lição do livro: que você não pode se considerar acima da lei apenas por achar que é superior.
Quando Kay disse, sobre as armas de destruição em massa, que "estávamos todos enganados, provavelmente, e isso é altamente perturbador", tanto os EUA quanto o Iraque descobriram que, quando você se esforça demais para controlar a imagem da realidade, corre o risco de perder contato com ela.
Kay defendeu a guerra com o Iraque, dizendo que os EUA "muitas vezes já entraram na guerra certa pelo motivo errado", e defendeu Bush, dizendo que, "se alguém foi atrapalhado pela inteligência, esse alguém foi o presidente".
Não há dúvida de que a CIA tem muito a explicar. Pelo preço irrisório de US$ 30 bilhões por ano, nossos ases da inteligência têm cometido erros espetaculares. Eles não nos avisaram sobre o 11 de Setembro com antecedência e não captaram a espiral da vergonha que envolveu Saddam, já com as faculdades prejudicadas e sendo enganado por seus cientistas.
Eles provavelmente confiaram demais nos contos das mil e uma noites de Ahmad Chalabi, então líder dos iraquianos no exílio, ansioso por espalhar a notícia da imaginária ameaça das armas com ogivas nucleares de Saddam porque isso atendia a seus próprios interesses e aspirações -e aos de seus amigos no Pentágono.
Entretanto, enquanto se afasta o mais rapidamente que pode das afirmações que fez sobre as armas iraquianas, Bush não chega perto de responder por seus atos. Afinal, estamos num ano eleitoral.
David Sanger, do "Times", relatou um debate no governo "sobre se Bush deveria ou não pedir, num prazo curto, algum tipo de reforma do processo de coleta de inteligência. Mas as autoridades disseram que os assessores de Bush estão à procura de uma fórmula que lhes permita reconhecer os problemas de coleta de informações sem atribuir a culpa" à CIA ou a sua direção.
O presidente quer agir como se tivesse um problema, mas não um escândalo, coisa que ele pode consertar sem cortar cabeças -daqueles que cometeram erros, honestos ou desonestos, fraudando a inteligência.
Dick Cheney, que declarou que Saddam tinha capacidade nuclear, resolveu continuar a afirmar o que sempre disse, mesmo enganado.
O vice-presidente fez pressão para afastar os aliados e a ONU e partir para a guerra em parte porque achava que bater num ditador enfraquecido, como Saddam, assustaria outros ditadores. Ele deve ter achado que, uma vez Saddam derrubado, o dia de prestação de contas finais sobre as armas nunca chegaria.
Então a ousadia e o atrevimento devem ter ganhado nova definição na terça-feira, quando Cheney, exibindo um ar mais infalível que o do papa, deu ao pontífice uma pomba de cristal.


Tradução de Clara Allain


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