São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 2002

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COMENTÁRIO

Comparações apressadas

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Primeiro, José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura em 1998, comparou a ação de Israel nos territórios palestinos à dos nazistas contra os judeus em Auschwitz. Agora, o arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984, exprime a sensação de que a conduta israelense assemelha-se à dos brancos durante o regime de segregação racial em seu país, entre os anos 40 e 80. Diante da destruição deixada pela passagem dos tanques israelenses, muitos comentaristas da atual crise no Oriente Médio têm cedido à tentação de invocar atrocidades marcantes do passado para estabelecer a dimensão desta tragédia do presente. Trata-se de um equívoco.
Esse desvio remete-se ao velho desejo iluminista de encaixar o mundo num esquema científico de previsibilidade da história. De acordo com essa premissa, é possível, a partir da observação da natureza e de suas "leis", deduzir relações de causa e efeito que, em última análise, satisfazem a necessidade humana de "explicar" o mundo.
Nessa lógica, o observador toma um evento, verifica sua natureza de acordo com os parâmetros "universais" disponíveis e, matematicamente, o enquadra em um sistema de pensamento previamente estabelecido, tornando-o cientificamente inteligível.
Alimenta-se assim a lenda da história que se repete, porque os acontecimentos só são compreendidos e aceitos como reais dentro desse sistema. Como notou Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento", tal procedimento substitui a mistificação religiosa pela mistificação científica: "O princípio da imanência, a explicação de todo o acontecimento como repetição, que o iluminismo defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito".
A pobreza evidente dos paralelismos, como os que a discussão sobre o problema do Oriente Médio tem gerado, é antes de tudo perigosa.
Ao utilizar idéias genéricas para explicar casos específicos, essa prática ignora particularidades contextuais e, em lugar de facilitar o entendimento real, oferece o pseudoconhecimento: aquele que, na ausência do espírito crítico, torna-se a panacéia dos falsos intelectuais, "pensadores" que não se vexam de distorcer os documentos para encaixá-los em suas teorias.
Uma análise honesta dos fatos implica necessariamente conhecê-los no domínio de suas relações históricas, e não divorciados delas.
Em outras palavras, estabelecer paralelos históricos usando-os como rótulos grosseiros, promovendo a substituição pura e simples do fato pelo que ele aparenta ser, sugere uma açodada preferência pelo sensacionalismo, em detrimento da muito mais trabalhosa compreensão elementar da crise.



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