São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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ARTIGO

Petróleo, geopolítica e a guerra com o Irã

MICHAEL T. KLARE
ESPECIAL PARA A FOLHA

No momento em que os EUA se preparam para lançar um ataque ao Irã, uma coisa é certa: nunca mais a administração Bush vai citar o petróleo como justificativa para uma guerra. Como foi o caso com o Iraque, as armas de destruição em massa (ADM) serão citadas como a principal razão do ataque americano previsto. "Não toleraremos a construção de uma arma nuclear (pelo Irã)", foi como explicou o assunto o presidente Bush, numa declaração de 2003 que é citada com freqüência. Mas, do mesmo modo que o fato de não terem sido encontradas armas ilícitas no Iraque invalidou o uso das ADM pela administração como razão primordial apresentada para invasão, a afirmação de que um ataque ao Irã seria justificado pelo alegado potencial nuclear desse país também deveria ser recebida com ceticismo. E, o que é mais importante, qualquer avaliação séria da importância estratégica do Irã aos Estados Unidos deveria focalizar seu papel na equação energética mundial.


Qualquer avaliação séria da importância estratégica do Irã aos EUA deveria focalizar seu papel na energia mundial


Antes de prosseguir, quero registrar que não afirmo que o petróleo seja a única força motriz por trás da aparente determinação da administração Bush em destruir a capacidade militar iraniana. Sem dúvida existem em Washington muitos profissionais da segurança nacional que estão de fato preocupados com o programa nuclear iraniano, assim como havia muitos profissionais legitimamente preocupados com a capacidade iraquiana em termos de ADM. Eu respeito essa posição. Mas nenhuma guerra jamais é movida por um fator único e isolado, e as declarações publicamente registradas deixam claro que muitas considerações, entre elas o petróleo, influíram sobre a decisão da administração de invadir o Iraque. É igualmente razoável supor que muitos fatores -também incluindo o petróleo- desempenhem um papel nas decisões que estão sendo tomadas no momento sobre um possível ataque ao Irã.
O peso exato do fator petrolífero nas decisões tomadas pelo governo não é algo que possamos determinar com absoluta segurança neste momento, mas, em vista da importância da energia nas carreiras e no pensamento de vários altos funcionários da administração atual, e em vista das imensas reservas iranianas, seria absurdo deixar de levar em conta o fator petrolífero. Mesmo assim, podemos ter certeza de que, à medida que as relações com o Irã forem se agravando, os relatos e análises da situação feitos pela mídia americana irão, de modo geral, manter grande distância do assunto (como fizeram na fase que antecedeu a invasão do Iraque).
Mais um aviso: quando se fala da importância do petróleo no pensamento estratégico americano com relação ao Irã, é importante irmos além da questão óbvia do papel potencial desse país na satisfação de nossas necessidades energéticas futuras. Pelo fato de o Irã ocupar uma posição estratégica no lado norte do Golfo Pérsico, o país tem condições de ameaçar os campos petrolíferos da Arábia Saudita, do Kuait, Iraque e Emirados Árabes Unidos, que, juntos, possuem mais da metade das reservas petrolíferas mundiais conhecidas.
O Irã também domina o estreito de Ormuz, por onde passam diariamente 40% de todas as exportações de óleo do mundo. Além disso, o Irã está se tornando importante fornecedor de petróleo e gás natural à China, Índia e Japão, fato que lhe confere influência adicional nos assuntos mundiais. São essas dimensões geopolíticas da energia, tanto quanto o potencial iraniano de exportar volumes importantes de petróleo para os EUA, que sem dúvida dominam os cálculos estratégicos da administração.
Isto dito, farei uma avaliação do potencial energético futuro do Irã. De acordo com os cálculos mais recentes do periódico "Oil and Gas Journal", o Irã abriga a segunda maior reserva de petróleo não explorada no mundo, um volume estimado em 125,8 bilhões de barris. Apenas a Arábia Saudita possui uma reserva maior, estimada em 260 bilhões de barris; o Iraque, o terceiro país, tem estimados 115 bilhões de barris. Sendo dono de tanto petróleo total -cerca de um décimo da reserva mundial total estimada-, o Irã certamente desempenha um papel crucial na equação energética global, não importa o que mais possa vir a acontecer.
Mas não é apenas a quantidade que importa no caso do Irã: igualmente importante é sua capacidade produtiva futura. Embora a Arábia Saudita possua reservas maiores, esse país hoje está produzindo petróleo a quase seu volume máximo sustentável (cerca de 10 milhões de barris por dia). É provável que ela não consiga elevar sua produção de maneira significativa nos próximos 20 anos, enquanto a demanda global, impelida pelo consumo aumentado nos EUA, China e Índia, está prevista para aumentar em 50%.
O Irã, por outro lado, tem um potencial considerável de crescimento: está produzindo cerca de 4 milhões de barris por dia, mas acredita-se que seria capaz de elevar essa produção em mais 3 milhões de barris, aproximadamente. Poucos outros países têm tal potencial, ou nenhum, de modo que a importância do Irã como produtor de petróleo, que já é significativa, não pode deixar de aumentar nos próximos anos.
E não é apenas petróleo que o Irã possui em grande abundância, mas também gás natural. De acordo com o "Oil and Gas Journal", o Irã possui estimados 940 trilhões de pés cúbicos de gás, ou seja, aproximadamente 16% das reservas mundiais totais (apenas a Rússia tem uma reserva maior: 1,68 quatrilhão de pés cúbicos). Como são necessários cerca de 6.000 pés cúbicos de gás para igualar o teor energético de um barril de petróleo, as reservas iranianas de gás representam o equivalente a cerca de 155 bilhões de barris de óleo.
A China, que vai precisar de quantidades enormes de óleo e gás adicionais para mover sua economia crescente, vem prestando atenção especial ao Irã. De acordo com o Departamento de Energia americano, o Irã foi responsável por 14% das importações de petróleo da China em 2003 e está previsto para fornecer uma parte ainda maior delas no futuro. Também se prevê que a China busque no Irã grande parte de suas reservas de gás natural líquido (GNL). Em outubro de 2004 o Irã assinou com a empresa energética chinesa Sinopec um contrato de US$ 100 bilhões, válido por 25 anos, para o desenvolvimento conjunto de um de seus maiores campos de gás e o envio subseqüente de GNL à China. Se esse acordo for consumado plenamente, vai constituir um dos maiores investimentos externos da China e representar um grande vínculo estratégico entre os dois países.
A Índia também está muito interessada em obter petróleo e gás do Irã. Em janeiro, a empresa Gas Authority of India Ltd. (Gail) assinou com a National Iranian Gas Export Corporation um contrato de 30 anos de vigência para a transferência de até 7,5 milhões de toneladas de GNL por ano para a Índia. O acordo, cujo valor é estimado em US$ 50 bilhões, também prevê o envolvimento da Índia no desenvolvimento das reservas iranianas de gás. E, o que é ainda mais digno de nota, autoridades da Índia e do Paquistão estão discutindo a construção de um gasoduto do Irã à Índia, passando pelo Paquistão, uma obra orçada em US$ 3 bilhões e que representaria um passo extraordinário para a Índia e o Paquistão, países que são adversários de longa data. Se for concluído, o gasoduto garantirá aos dois países um fornecimento substancial de gás e permitirá ao Paquistão auferir entre US$ 200 milhões e US$ 500 milhões por ano em tarifas de trânsito. "O gasoduto é uma proposta integralmente positiva para o Irã, a Índia e o Paquistão", declarou em janeiro o primeiro-ministro paquistanês, Shaukat Aziz.
Assim, quando analisa o papel do Irã na equação energética global, a administração Bush tem dois objetivos estratégicos chaves: o desejo de abrir os campos iranianos de petróleo e gás à exploração por empresas americanas e a preocupação em torno dos vínculos crescentes do Irã com os concorrentes dos EUA no mercado energético global. Pelas leis americanas, o primeiro desses objetivos só poderá ser alcançado quando o presidente revogar a OE 12959, e é pouco provável que isso aconteça enquanto o Irã continuar sob o controle de mulás antiamericanos e recusar-se a abrir mão de suas atividades de enriquecimento de urânio com potenciais aplicações militares.
Do mesmo modo, a proibição do envolvimento dos EUA na produção e exportação energética do Irã não proporciona a Teerã outra escolha senão procurar vínculos com outros países consumidores. Desde o ponto de vista da administração Bush, só existe uma maneira óbvia e imediata de modificar esse cenário indesejável: induzindo uma "mudança de regime" no Irã e substituindo sua liderança atual por outra que seja muito mais favorável aos interesses estratégicos dos EUA.
Não há dúvida nenhuma de que a administração Bush está interessada em fomentar a mudança de regime no Irã. O simples fato de o Irã ter sido incluído, ao lado do Iraque de Saddam e da Coréia do Norte de Kim Jong Il, no "eixo do mal" mencionado no discurso do Estado da União proferido pelo presidente em 2002, constituiu indicativo inegável disso.
Bush manifestou sua posição novamente em junho de 2003, num momento em que ocorreram protestos estudantis contra o governo em Teerã. "Isto é o início de um processo de o povo expressar-se em favor de um Irã livre, algo que considero positivo", declarou Bush.
Num indicativo mais significativo da atitude da Casa Branca com relação ao assunto, o Departamento da Defesa não desarmou totalmente a Mujahedine do Povo do Irã (ou Mujaheddin-e Khalq, MEK), uma milícia antigoverno que hoje tem suas bases no Iraque e que vem conduzindo ações terroristas no Irã. O grupo consta da lista de organizações terroristas compilada pelo Departamento de Estado. Em 2001, o "Washington Post" noticiou que algumas figuras de alto escalão do governo gostariam de usar a MEK como força agindo por procuração no Irã, do mesmo modo como a Aliança do Norte foi usada contra o Taleban no Afeganistão.
A liderança iraniana tem consciência de que enfrenta ameaça grave por parte do governo Bush e, sem dúvida, deve estar tomando as medidas que estão a seu alcance para impedir tal ataque. Nesse ponto, também, o petróleo constitui um fator de importância maior nos cálculos tanto de Teerã quanto de Washington.
Para prevenir um possível ataque americano, o Irã ameaçou fechar o estreito de Ormuz e aplicar outras medidas para impedir o transporte petrolífero na região do golfo Pérsico. "Um ataque ao Irã equivalerá a colocar em perigo a Arábia Saudita e o Kuait -em outras palavras, todo o petróleo do Oriente Médio", disse em março o secretário do Conselho de Diligência iraniano, Mohsen Rezai.
Ameaças como essa são levadas muito a sério pelo Departamento de Defesa americano. "Avaliamos que o Irã terá condições de fechar o estreito de Ormuz por período breve, utilizando uma estratégia em partes que utilizará predominantemente forças navais, aéreas e algumas terrestres", disse o vice-almirante Lowell E. Jacoby, diretor da Agência de Inteligência da Defesa, em depoimento perante o Comitê de Inteligência do Senado em 16 de fevereiro.
O planejamento para tais ataques é sem dúvida uma prioridade importante para o Pentágono. Em janeiro, o jornalista Seymour Hersh escreveu na revista "New Yorker" que o Departamento da Defesa estava conduzindo operações sigilosas de reconhecimento no Irã, supostamente para localizar instalações nucleares e de mísseis iranianas escondidas que poderiam tornar-se alvos de futuros ataques aéreos e de mísseis.
"Ouvi repetidas vezes que o próximo alvo estratégico será o Irã", disse Hersh, referindo-se às entrevistas com altos funcionários militares. Pouco depois o "Washington Post" revelou que o Pentágono estava enviando aviões de vigilância não tripulados em sobrevôos sobre o Irã para verificar a localização de armas e para testar as defesas aéreas iranianas.
Como observou o jornal, "a espionagem aérea (desse tipo) é um elemento padrão nos preparativos militares para um eventual ataque aéreo".
Também houve relatos sobre conversas entre autoridades americanas e israelenses sobre um possível ataque de Israel a instalações de armas iranianas com assistência dos EUA.
Assim, ao mesmo tempo em que falam publicamente das armas de destruição em massa do Irã, as figuras chaves da administração certamente estão pensando em termos geopolíticos sobre o papel do Irã na equação energética global e sua capacidade de obstruir o fluxo mundial de petróleo. Como foi o caso com o Iraque, a Casa Branca está determinada a eliminar essa ameaça de uma vez por todas. E dessa maneira, embora o petróleo possa não ser a única razão da administração de ir à guerra contra o Irã, ele é um fator essencial no cálculo estratégico global que faz da guerra uma opção provável.

Michael T. Klare é professor de estudos de paz e segurança mundial no Hampshire College
Tradução de Clara Allain


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