São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tropa da ONU é pouco para resolver crise haitiana, dizem especialistas

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O Haiti é por enquanto um país inviável. Poderá sair do fundo do poço não apenas quando a segurança interna for restabelecida, mas sobretudo quando reerguer seu Judiciário e reativar serviços de saúde, transportes e educação, hoje em estrondoso colapso.
O diagnóstico pessimista parte de Christian Girault, pesquisador de América Latina e Caribe no CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) da França.
Em entrevista à Folha, ele disse que as forças internacionais que o Brasil lidera são insuficientes para enfrentar o problema da ordem interna num país de 7,5 milhões de habitantes, que não tem mais Forças Armadas e no qual a polícia não funciona.
"É mais ou menos como no Iraque, com a diferença de que, no Haiti, os bandos armados não atacam tropas estrangeiras. Atacam-se uns aos outros, roubam, seqüestram e matam", disse.
Outros indícios da situação caótica em que o país se encontra foram dados à Folha por representantes locais de duas respeitáveis organizações humanitárias, a Care Internacional, baseada em Bruxelas e atuando no Haiti há 50 anos, e a Terra dos Homens, com sede na Suíça e sobretudo voltada à saúde da população infantil.
Hugues Temple-Boyer, da Terra dos Homens, disse que o Ministério da Saúde não tem eletricidade para funcionar. Suas instalações foram saqueadas durante a crise política que resultou, em fevereiro, na queda do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide.
Os hospitais públicos têm o essencial dos medicamentos fornecidos por organismos internacionais. Mas parte desse estoque é pilhada pelos médicos locais, que há quatro meses não recebem salários e sobrevivem com a renda de suas clínicas particulares.
A rede hospitalar só não deixou de funcionar pela presença de médicos cubanos, diz Temple-Boyer. Eles fazem um trabalho importante, mas, por causa deles, médicos haitianos sentem-se pouco responsáveis e dão expediente de duração simbólica.
A subnutrição crônica entre as crianças, embora hoje seja bem menor que há dez anos, voltou a crescer. Sandy Laumark, há quase cinco anos no Haiti pela Care, diz que entre 20% e 25% das crianças com até cinco anos apresentam algum grau de subnutrição. O país só produz metade dos alimentos de que precisa.
O pior é o desencanto. De cada dez haitianos, dois já deixaram o país. Há uma emigração maciça para a República Dominicana, o Canadá e os EUA -só os americanos emitem no Haiti 45 mil vistos anuais. Essas pessoas enviam a suas famílias de US$ 800 milhões a US$ 1 bilhão por ano.
E não são apenas trabalhadores braçais que se vão, diz Girault. A própria elite arrumou as malas e foi embora, refletindo o desencanto de pessoas com formação técnica ou dinheiro. Há também os que emigraram por medo. Juízes ameaçados deixaram muitos tribunais vazios -pessoas que nos anos 90 receberam do exterior auxílio e formação para fazerem o Judiciário funcionar.
As Forças Armadas foram dissolvidas por Aristide, tão logo ele voltou ao poder, em 1994. Antigos oficiais subalternos levaram armas para casa e hoje controlam o crime organizado. A comunidade internacional tentou, entre 1995 e 2000, dotar o Haiti de uma polícia honesta e competente. "A violência nunca foi tão grande quanto agora", diz Laumark, da Care.
Ela também ressalta que a corrupção é um problema endêmico. A Transparência Internacional, entidade especializada no tema, classifica o Haiti como o segundo país mais corrupto do mundo.
Temple-Boyer diz que ninguém sabe ao certo onde foi parar o dinheiro que ingressou nos anos 90 sob a forma de ajuda humanitária. Dos países pobres, o Haiti foi o que recebeu mais recursos per capita. Havia ralos no funcionalismo público e em falsas ONGs.
Girault diz que a corrupção só diminuirá se a sociedade se organizar e criar mecanismos de controle. Há um núcleo sério e preocupado com isso, formado sobretudo por lideranças católicas e evangélicas, mas não há ainda, propriamente, sociedade civil.
Os partidos políticos são grupos formados em torno de indivíduos, e a população ainda está dividida entre adversários e partidários de Aristide -dono de um discurso populista que assimilava a presença estrangeira a uma volta da escravidão camuflada.
"Se quisermos ver um horizonte, é preciso focarmos nossa atenção nos jovens. A geração com mais de 40 ou 50 anos sofreu muito e foi muito corrompida", diz.


Texto Anterior: Missão no Caribe: Empatia vale mais que arma na força de paz
Próximo Texto: Psicanálise: "Guerras freudianas" ganham força no Reino Unido
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.