São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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PSICANÁLISE

Criação do Colégio de Psicanalistas britânico põe em xeque prática clínica tradicional e causa reação inflamada

"Guerras freudianas" ganham força no Reino Unido

D.D. GUTTENPLAN
DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

Quem é dono da psicanálise? A pergunta está no cerne da batalha mais recente das "guerras freudianas", uma luta épica pelo legado de Sigmund Freud (1856-1939), psicoterapeuta pioneiro, cartógrafo do inconsciente e morador de Hampstead (Londres).
No ano passado, um grupo novo intitulado Colégio de Psicanalistas convidou terapeutas britânicos que satisfizessem qualificações a entrar para seu "registro de profissionais". A Sociedade Psicanalítica Britânica, quartel-general da análise freudiana clássica, reagiu acusando o colégio de induzir o público ao erro com seu treinamento e suas qualificações".
As estocadas começaram quando um fundador do colégio chamou a ação da sociedade de "reação fóbica ao crescimento, como simbolizado no mito de Édipo".
Em declaração, a sociedade descreve o colégio como artifício para que terapeutas "se façam passar por psicanalistas formados" -uma fraude sob a lei britânica; logo, a afirmação representou uma declaração de guerra.
Para a terapeuta Susie Orbach, membro ativo do colégio, o argumento da sociedade de que o título de psicanalista "se refere ao que foi treinado para fazer" é bobagem e restringe a prática.
Apesar de parecer uma discussão tacanha, trata-se de uma disputa sobre a natureza da terapia. E fica claro que se trava uma guerra intransigente em torno de dinheiro, prestígio e poder.
No Reino Unido, as origens dessa batalha são peculiares. Diferentemente da psicoterapia americana, a psicoterapia britânica não é regulamentada pelo governo. Até recentemente, era exigência dos EUA que a maioria dos psicanalistas tivesse diploma de medicina. Os analistas britânicos, como outros na Europa, nunca foram obrigados a ter formação médica nem formação universitária em psicologia.
Como quase toda a psicoterapia praticada no Reino Unido ocorre fora do âmbito do Serviço Nacional da Saúde, o governo se manteve neutro. Pela lei, qualquer um com ousadia para isso pode ser psicanalista no Reino Unido.
Nos EUA, algumas dessas batalhas são travadas há anos. Em 1989, a Associação Psicanalítica Americana -que então exigia de seus membros diploma médico- concordou em resolver um processo judicial antitruste por acordo extrajudicial e permitir que psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e outros profissionais de saúde mental fizessem treinamento analítico.
O fluxo de novos analistas criou vários problemas. Os candidatos tinham de se submeter ao regime de treinamento tradicional: análise pessoal feita quatro ou cinco vezes por semana por vários anos e análises supervisionadas nas quais o candidato recebia seus pacientes. Alguns candidatos questionaram a diferença entre psicoterapia analítica e psicanálise.
Ambos os lados da disputa atual colocam a prática clínica no cerne da psicanálise. As diferenças são tão políticas quanto teóricas. Hoje os analistas têm a liberdade de desconsiderar a ênfase que Freud atribuía ao instinto. E, embora a exigência da análise quatro ou cinco vezes por semana para os candidatos a analistas garanta trabalho aos analistas professores, seus trainees têm de competir em um mundo que tende a dar preferência às soluções rápidas, quer sejam medicamentosas ou saídas do consultório de um terapeuta comportamental, e no qual a superioridade da psicanálise deixou de ser dada como certa.
Essa disputa pode levar à regulamentação, nos próximos anos, da profissão de psicanalista no Reino Unido.


Tradução de Clara Allain


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