São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Manual de sobrevivência no Iraque

Jornalista brasileiro a serviço de TV dos EUA relata o dia-a-dia tenso no país e mostra o crescente ódio contra os ocidentais

MAGNUS MACEDO
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM BAGDÁ

Com o verão se aproximando, a temperatura diurna sobe a cada dia em Bagdá. E o humor do povo iraquiano também vai se tornando mais esquentado.
A morte de quatro civis americanos em Fallujah, em abril, deflagrou uma onda de violência inédita contra os estrangeiros trabalhando no Iraque. Para todos nós, jornalistas estrangeiros que trabalhamos no Iraque ao longo do último ano, a capacidade de executar nossas tarefas passou por dramática deterioração.
É espantosa a rapidez com que a situação se degradou. Em pouco mais de duas semanas, o país irrompeu em revolta, e, subitamente, era como se estivéssemos cobrindo uma nação diferente. As políticas adotadas pelos americanos causam oposição, insurreições e protestos em todo o país e entre os vários grupos étnicos e religiosos. A humilhação e a tortura dos prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib tampouco ajudou. Na verdade, a impressão que formei em conversa com alguns moradores locais é que o escândalo de Abu Ghraib teve influência terrível, talvez catastrófica, sobre sua opinião quanto ao Ocidente. Foi como se a última gota de paciência tivesse se esvaído.
Quando cheguei a Bagdá pela primeira vez, em abril de 2003, o cenário era completamente diferente. Ainda que esse caótico país vivesse em estado de quase anarquia, nós, jornalistas, tínhamos então muito mais liberdade de movimento (e éramos tratados com cortesia e respeito).
Tive a oportunidade de visitar Abu Ghraib na época. Lá, vimos alguns ex-presos recolhendo lembranças bizarras como cordas de enforcar e ganchos de metal usados nas torturas.
Fizemos a visita à prisão guiados por um sujeito que passara sete anos preso lá por assassinato. Ele estava muito determinado a exibir aos ocidentais as celas de enforcamento e de tortura, bem como os murais de Saddam Hussein pintados nas paredes das salas de guarda, exibindo o ex-ditador como um homem de paz, com pombas nas mãos, sobre fundo de aparência celestial. Se a visita fosse hoje, provavelmente terminaríamos enterrados nas valas comuns então encontradas nos fundos da prisão.
No mesmo período, também visitei Fallujah. A visita aconteceu apenas um dia depois que soldados americanos abriram fogo contra manifestantes concentrados diante da antiga sede do partido Baath, matando 17 deles.
Entrevistei um médico que estava diante de um edifício ocupado por soldados americanos, e ele perguntou: "Quando os soldados americanos vão partir? Quando vão me devolver meu país? Não temos remédios suficientes para tratar nossos pacientes. Nem sequer temos água limpa. Nossas escolas estão arruinadas, e nossas crianças não podem sair à rua para brincar porque é perigoso demais. Sim, estamos felizes com a queda de Saddam, mas nossa situação não é melhor do que no passado. Se visse um soldado americano do lado de fora da minha casa, cortaria sua garganta".

Medo
Em fevereiro e março deste ano, nossas equipes podiam registrar a explosão de uma bomba em um hotel no centro da cidade, ou de um carro-bomba em uma rua lotada de pessoas, ou até mesmo visitar famílias iraquianas em suas casas. Tudo isso com segurança razoável, ainda que limitada. Podíamos viajar a diferentes cidades em todo o país com muito menos medo de ataque.
Fui de Bagdá a Mossul, e a Arbil, Nassiriah, Basra, Najaf e Karbala. Apenas dois meses atrás, podíamos sair dos nossos carros e conversar com os moradores, o que nos permitia obter uma impressão real do que estava acontecendo na vida deles.
Hoje, uma operação desse tipo seria completamente impensável. Temos de depender de operadores locais de câmera, independentes, e de repórteres rápidos e capazes de percorrer as ruas para obter uma impressão sobre o que realmente está acontecendo.
As coisas mudaram muito, agora. Estamos restritos a viajar de carro entre pontos predeterminados (sem paradas), visitando escritórios oficiais ou hotéis considerados neutros, para nossas entrevistas. Isso significa que podemos falar com funcionários do governo e com executivos, mas não com a maioria da sociedade. As ruas do país se tornaram inseguras para nós, e nossa presença poderia tornar as casas dos moradores inseguras para eles.
Trabalho para uma rede de televisão americana, a ABC, e nossa segurança sempre foi motivo de séria preocupação.
Nossa base fica em um bairro de classe média alta chamado Karada. Nós ocupamos (uma palavra usada com muita freqüência aqui) três pequenos hotéis localizados em dois quarteirões de uma rua. As vias de acesso ficam bloqueadas por blocos de concreto, barreiras contra explosões e arame farpado. Temos seguranças armados em prontidão 24 horas por dia. Só há um caminho de acesso para as nossas instalações, protegido por uma barreira e espigões de ferro no chão.
Nossos guardas foram treinados por uma empresa de segurança britânica, que é formada basicamente por ex-oficiais e soldados das forças especiais do Exército britânico. A equipe local de segurança foi treinada para lidar com desconhecidos que se aproximem de nossas instalações e também instruída a checar todos os veículos e a identidade de seus ocupantes. As verificações incluem uma busca por explosivos nos motores e sob os veículos.
Todos os membros da equipe de segurança foram treinados em procedimentos paramédicos básicos de primeiros-socorros e estímulo cardíaco. Temos palestras semanais sobre os mais recentes ataques na cidade e sobre maneiras de melhorar nossa segurança, evitando exposição demasiada.
Só nos deslocamos em carros blindados (temos cinco deles) e, a cada vez que temos de sair, garantimos que os demais membros da equipe, que ficam na sucursal, saibam para onde estamos indo.
Caso precisemos fazer muitas viagens a um destino específico durante um período de três ou quatro dias, sempre nos asseguramos de que rotas diferentes sejam usadas para nos conduzir até ele.
Aprendemos esses truques com os nossos seguranças. Eles têm um grau espantoso de conhecimento. Para não mencionar o fato de que alguns falam árabe e passaram temporadas prolongadas no Oriente Médio, em diversas operações militares.

Jornalistas mortos
Operar sem segurança no Iraque hoje seria uma decisão suicida para qualquer empresa ocidental. Basta apontar o imenso número de pessoas, entre as quais jornalistas, tomadas como reféns ou assassinadas de maneira trágica e brutal, como Nick Berg, decapitado diante das câmeras.
A situação por aqui é tão ruim que até mesmo as empresas de segurança sediadas em Bagdá e outros locais do país se vêem sob ataque, periodicamente.
Não muito longe de nossas instalações, há uma delegacia de polícia e a sede de uma empresa americana de segurança, no prédio vizinho. É irônico perceber que o Exército dos EUA precisa cuidar da segurança de ambos os locais, tanto a delegacia de polícia quanto a sede da empresa de segurança, com um blindado e seis soldados em patrulha diária.
E, mesmo com todas essas medidas de segurança, continua a ser muito perigoso estar aqui. Tiros de morteiro explodem em nosso bairro praticamente todos os dias. Fogo de metralhadora é tão comum quanto o chamado para as preces islâmicas. Algumas explosões são tão próximas, ocasionalmente, que as janelas do meu quarto tremem e as cortinas se mexem, com a concussão.
Duas semanas atrás, tivemos também um incidente de "Ali Babá" (roubo) por aqui. Um grupo de assaltantes tentou invadir a sucursal, mas foram repelidos pelos nossos guardas armados. Houve um tiroteio. Por sorte, nossos guardas foram mais fortes, e os ladrões fugiram. Durante o tiroteio, vimos balas ricocheteando nos prédios de nossa rua, a mesma pela qual caminhamos todos os dias.


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