São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Ser brasileiro ajuda muito nesta parte do mundo

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Bagdá é hoje provavelmente a cidade mais perigosa do mundo. O simples ato de ir até a esquina comprar cigarros não é viável. Tomar um chá sentado nas mesas de calçada de um restaurante seria uma atitude irresponsável.
Ter nascido no Brasil me ajuda muito, nesta parte do mundo. A maior parte dos iraquianos admira muito os brasileiros e sua cultura. Quando digo que sou brasileiro, a atitude deles muda de maneira drástica. Em muitas ocasiões, me dizem os nomes de inúmeros jogadores de futebol do Brasil, às vezes até os dos anos 70. "Você é muito bem-vindo, senhor", dizem eles. "O Brasil é muito bonito, nós amamos o Brasil, amamos o futebol brasileiro e também amamos as mulheres brasileiras e o Carnaval." Tem sido sempre assim, desde que cheguei aqui, no ano passado.
Mas as coisas mudaram um pouco, devido às restrições impostas pela falta de segurança. Continuo não achando que alguém queira me fazer mal, em razão da minha nacionalidade, mas não vale a pena correr o risco.
Sem querer comparar, no entanto, se eu dissesse que sou americano ou britânico, seria suicídio. Mesmo assim, eu não deixo que meu instinto me comande, ainda que não me sinta ameaçado, porque estou no Iraque, e o Iraque é barra-pesada. Eu costumava brincar com meus colegas americanos dizendo que, se um dia fôssemos seqüestrados, eu seria libertado, como brasileiro, e eles não. Obviamente, é apenas uma piada, e os caras maus lá fora não estão para brincadeira.
O seqüestro de estrangeiros continua a ser uma ameaça permanente. Enquanto escrevo este texto, recebemos informações de que uma equipe da TV News foi seqüestrada perto de Fallujah. Os seqüestradores libertaram o guia iraquiano, mas mantiveram o repórter, a equipe de câmera e o tradutor cativos. Até agora, ninguém sabe se o motivo do seqüestro é político ou se se trata de obra do crime organizado.

Frustração
Se você estiver dirigindo sozinho pelas ruas Bagdá, não pode baixar a guarda nem por um momento, e tem de se manter sempre atento a tudo que acontece à sua volta. Mas mesmo assim, não há garantia de que esteja seguro.
Fazemos o melhor que podemos, esse é o lema da minha equipe, mas o nosso melhor fica longe do ideal. Na verdade, a situação é extremamente frustrante. Para os nossos correspondentes, o método atual de reportagem não ajuda. Não temos acesso, contato humano -tudo o que é importante para contar uma boa história. Esses problemas tornam nossa cobertura aqui um completo desastre.
Às vezes, conseguimos dar um tempero extra às nossas reportagens, por meio de um breve contato obtido nas ruas pelos nossos repórteres mais ágeis.
Além disso, nossa experiência pessoal com a equipe de apoio local nos ajuda. Eles nos contam suas ansiedades e expectativas para o futuro, expressando, principalmente, preocupação em relação ao futuro de seus filhos. São elementos pequenos, mas preciosos, em nossas reportagens.
O lado negativo é que nossa equipe local de apoio inclui cozinheiros, faxineiros, motoristas, tradutores, guias e seguranças, mas eles jamais dizem aos seus vizinhos, por exemplo, que estão trabalhando para uma empresa norte-americana.
Alguns advertem os filhos, dizendo que podem colocar a vida de seus pais em risco caso contem, na escola, que eles trabalham para uma empresa dos EUA. Em alguns casos, nem mesmo suas mulheres conhecem seu trabalho. Não há dinheiro que compense os riscos que alguns deles assumem em nosso benefício.
Todas as redes de televisão americanas vêm trabalhando da mesma forma. A concorrência entre as redes desapareceu aqui no Iraque. Cada vez mais fazemos reportagens conjuntas, trocamos imagens e informações.
Temos também de depender de equipes de câmeras locais, que falem árabe ou tenham a pele mais escura, e mesmo isso pode ser fatal. Há cerca de um mês contratamos um câmera iraquiano para trabalhar em Fallujah. Burham, 37, tinha experiência como cinegrafista e, embora não seja mais recomendável que iraquianos trabalhem para americanos, ele se candidatou ao emprego porque a situação do país é lastimável. Foi apanhado em um fogo cruzado entre soldados americanos e insurgentes em um subúrbio de Fallujah. Um atirador americano o matou com um tiro na cabeça.
Esse é o dilema para todas as redes estrangeiras que trabalham aqui. Enviar uma de nossas equipes é perigoso demais, por motivos óbvios. Mas enviar pessoal local acarreta a mesma ameaça, só que vinda do Exército.
Em outro incidente, um câmera da Reuters levou um tiro na cabeça enquanto filmava diante da prisão de Abu Ghraib. Ele era árabe de origem, e o soldado que atirou confundiu sua câmera com um lança-foguetes.
Não muito tempo atrás, dois jornalistas iraquianos foram mortos a tiros depois que seu carro bateu num veículo militar. O veículo estava bloqueando uma rua que dava acesso ao local de um atentado a bomba. O motorista iraquiano estava tentando fazer a volta quando o carro foi atingido por uma rajada de balas. (MM)


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