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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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ENTREVISTA

"Princípios não estão à venda", afirma o chanceler sobre eventual punição dos EUA ao país

Brasil não teme represália, diz Amorim

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) respondeu de forma incisiva e cortante às advertências de que o Brasil foi muito fundo na condenação à guerra do Iraque e estaria sujeito a retaliações dos EUA, a maior potência planetária: "Princípios não estão à venda", disse o chanceler à Folha.
Depois de ressaltar que não há nenhum antiamericanismo e antagonismo, ele insinuou: "Que interesse eles teriam em enfraquecer a maior democracia do continente depois deles próprios?"
Amorim, entretanto, não descartou a possibilidade de efeitos da guerra nas negociações multilaterais e regionais, inclusive para a formação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Ele falou por telefone de Atenas, onde participou de reunião da União Européia com países latino-americanos. Depois irá ao Vaticano, à França e à Rússia.

Folha - O que o sr. vai discutir em suas conversas em Moscou e Paris nesta semana?
Celso Amorim -
Os esforços diplomáticos não devem cessar porque as hostilidades começaram. Elas poderão ser úteis, seja para abreviar o conflito [no Iraque", seja para encontrar as melhores soluções para o pós-guerra, com a presença da ONU.

Folha - A ONU não está a caminho do fim com a decisão unilateral dos EUA de invadir o Iraque?
Amorim -
Não. A ONU não acabou nem está acabando. Os próprios EUA nunca disseram que a ONU acabou, e acho que eles também vão acabar concluindo que a ONU e o sistema multilateral ainda são a melhor maneira para resolver as questões.

Folha - Mas os EUA puseram em xeque o multilateralismo, a ONU e o próprio Conselho de Segurança. Nada acontece?
Amorim -
Não adianta passar o resto da vida só pensando no que aconteceu. Nós já dissemos claramente que lamentamos o uso da força e especialmente que tenha sido usada sem autorização do Conselho. Mas isso matou o Conselho de Segurança? Não, não matou. Seria melhor que ele tivesse sido respeitado, que tivesse havido uma solução pacífica e que, agora, a guerra durasse o mínimo possível. Mas é fundamental que as Nações Unidas continuem a receber apoio dos principais países.

Folha - Por que o Brasil baixou o tom, depois de ter condenado tão explicitamente a guerra de Bush?
Amorim -
Você quer uma declaração todo dia? Não há silêncio.

Folha - O presidente, numa rápida entrevista, foi muito duro ao condenar o unilateralismo dos EUA e essa posição de se arrogarem o direito de decidir o que é ruim e o que é bom para o mundo. Houve problemas?
Amorim -
Não. Foi uma declaração num momento muito difícil, muito dramático, que antecedia a guerra. Eu mesmo, na Câmara, também fui muito incisivo, porque era necessário ser incisivo. O presidente expressou, com palavras claras, fáceis de compreender, a essência do unilateralismo, que é um país decidir o que é bom para todos os demais.

Folha - Então, por que, no pronunciamento do presidente na TV, depois de iniciada a guerra, ele foi muito mais cauteloso e nem citou os EUA e o presidente Bush?
Amorim -
O pronunciamento na TV é solene, é um posicionamento do governo brasileiro diante de um fato que já tinha ocorrido. Não creio que tenha havido recuo nenhum.

Folha - E quanto à declaração do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia oferecendo, ou admitindo, asilo a Saddam Hussein?
Amorim -
Tenho a impressão de que o professor Marco Aurélio Garcia desmentiu a declaração.

- Não foi gravada?
Amorim -
Bom, ele desmentiu. O que posso dizer é que essa possibilidade nunca esteve nas considerações do governo brasileiro, inclusive por ser desnecessária. Se o problema fosse asilo, o Saddam já teria ido para a Arábia Saudita, para os Emirados Árabes.

Folha - Então, o assessor foi no mínimo inoportuno?
Amorim -
O que você quer que eu fale? Eu falo sobre políticas, não comento sobre pessoas.

Folha - Mas ele é assessor do presidente e o que fala repercute dentro e fora do país.
Amorim -
Está aí a resposta: esse tema não esteve em consideração no governo brasileiro.

Folha - Então, vamos à assessora de Segurança Nacional do Bush, Condoleezza Rice. Ela escreveu artigo, publicado pela Folha, dizendo que cerca de 50 países apoiaram a guerra, o que corresponde a um PIB de US$ 22 trilhões e a uma população de 1,2 bilhão de pessoas. O Brasil está na contramão?
Amorim -
Não sei que cálculos são esses, nem que países foram incluídos neles. Só sei que nem o Brasil está na contramão nem estamos contra os EUA. O melhor amigo não é aquele que concorda sempre, é o que, compartilhando os mesmos valores, é capaz de dar sua própria opinião, de divergir com franqueza e lealdade, sem antagonismo. Acho que essa posição é perfeitamente compreendida pelo governo americano.

Folha - E a negociação da Alca?
Amorim -
Tem uma mecânica e uma dinâmica próprias, e estamos dando todos os passos que temos que dar, olhando mais o aspecto comercial e pragmático. Tenho comentado, mais em tom de preocupação do que de profecia, que esse clima de guerra pode ser desfavorável para negociações multilaterais. Se isso ocorrer, pode também ter reflexos em negociações regionais, como a Alca. Mas continuamos a dar os passos que temos que dar, em função da análise dos nossos interesses e dos nossos sócios do Mercosul.

Folha - O Brasil não teme retaliações, inclusive econômicas?
Amorim -
Princípios não estão à venda. Mas não creio que haverá retaliações. Não creio que seja do interesse dos EUA. Primeiro, eles sabem que não há nenhum antiamericanismo, nenhum antagonismo contra eles. E, segundo, que interesse eles teriam em enfraquecer a maior democracia do continente depois deles próprios?

Folha -Independentemente de retaliações ou não, que efeitos a guerra pode ter sobre o Brasil?
Amorim -
Isso depende de muitos fatores, mas concordo com o que o ministro do Planejamento [Guido Mantega" disse há pouco em Milão: o risco-Brasil diminuiu, o dólar desceu, mas ambos poderiam ter caído mais, não fosse essa situação de incerteza no mundo, que gera certo nervosismo nos mercados financeiros. O Brasil foi, provavelmente, o país em desenvolvimento menos afetado. E o que também poderá afetar, ao mundo inteiro, é uma recessão prolongada.

Folha -E o pós-guerra?
Amorim -
A única coisa que se sabe hoje é que o conflito não vai ser tão curto quanto se imaginou.

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