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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

Passados 11 dias do início do conflito, a ordem do governo é voltar à rotina, na medida do possível

"Ver Bagdá bombardeada não é novidade", disse um morador. "Não dá para parar a vida por isso"

Bagdá tenta aparentar normalidade

A imagem é quase boa demais para ser verdade. Bagdá amanheceu seu segundo domingo sob guerra lavando Saddam Hussein. Na praça Al Firdos, quase à beira do rio Tigre, três funcionários da prefeitura tiravam da estátua do presidente iraquiano com o forte jato de água de uma mangueira a camada de poeira acumulada pelos dois dias de tempestade de areia que castigou a cidade na semana passada. Eram observados de longe por soldados do Exército, que protegiam a operação.
Passados 11 dias do início do conflito, a ordem geral do governo é voltar ao normal na medida do possível. Não há números oficiais, mas um passeio por Bagdá indicava que cerca de 30% das lojas, restaurantes e quiosques de ambulantes estavam funcionando normalmente.
Já pela manhã, voltou a sinfonia de buzinas, uma mania local justificada pela falta de respeito aos semáforos que havia desaparecido desde quarta-feira retrasada.
No tradicional mercado central de Shorga, entre as pontes da Libertação e dos Mártires, um vendedor espantava com um espanador as moscas de sua barraquinha de ataif, um doce sírio recheado de nozes que é mergulhado num enorme pote de mel.
Na frente, uma fila de quatro pessoas esperando a vez para comer. No chão, senhores de roupa tipicamente iraquiana, longos vestidos cobertos por uma espécie de paletó, ofereciam laranjas mais mirradas mas mais coloridas do que suas equivalentes brasileiras. Saíam a 250 dinares iraquianos cada (cerca de R$ 0,25).
O item mais comprado nas lojinhas que vendem o pouco de eletrodoméstico que chega ao Iraque dos países vizinhos, apesar do embargo, era a antena portátil de TV, reflexo direto da política de bombardeios da coalizão anglo-americana, que vem concentrando seus ataques em alvos ligados às telecomunicações, como emissoras de TV.
O resultado é que a transmissão doméstica perdeu qualidade, daí a procura local pelas antenas novas. Lavanderias, lanchonetes e até algumas casas de câmbio recebiam os fregueses que se aventuraram a sair às ruas, apesar dos bombardeios, que continuaram pelo dia inteiro de ontem.
"Ver Bagdá bombardeada não é novidade para nós", disse Amjad Majeed, enquanto observava o comércio. "Ficamos em guerra por oito anos com o Irã, emendamos com a Guerra do Golfo e desde então sofremos ataques esporádicos dos EUA. Não dá para parar a vida por conta disso."
Ele não está sozinho no raciocínio. Indagados pela Folha ao longo dos últimos dias, diversos bagdalis responderam a mesma coisa. A impressão que dá é que o morador da cidade encara a possibilidade de ser atingido ou de morrer num bombardeio como uma vila próxima de um vulcão encara as explosões de lava ou uma cidade litorânea do Caribe lida com a hipótese de um maremoto: mais cedo ou mais tarde pode acontecer, então o melhor é não pensar nisso e ir vivendo.
Mesmo os ruídos já não assustam mais tanto assim e lembram ao repórter as trovoadas que antecedem as chuvas de verão.
Com alguns dias, já é possível inclusive diferenciar o que é avião, o que é míssil, o que é bateria antiaérea, o que é bomba atingindo o solo e, nesse caso, mesmo qual o seu tipo, se a "convencional" ou a "treme-terra".

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