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DIÁRIO DE BAGDÁ
Passados 11 dias do início
do conflito, a ordem do
governo é voltar à rotina,
na medida do possível
"Ver Bagdá bombardeada
não é novidade", disse um
morador. "Não dá para
parar a vida por isso"
Bagdá tenta aparentar normalidade
A imagem é quase boa demais
para ser verdade. Bagdá amanheceu seu segundo domingo sob
guerra lavando Saddam Hussein.
Na praça Al Firdos, quase à beira
do rio Tigre, três funcionários da
prefeitura tiravam da estátua do
presidente iraquiano com o forte
jato de água de uma mangueira a
camada de poeira acumulada pelos dois dias de tempestade de
areia que castigou a cidade na semana passada. Eram observados
de longe por soldados do Exército, que protegiam a operação.
Passados 11 dias do início do
conflito, a ordem geral do governo é voltar ao normal na medida
do possível. Não há números oficiais, mas um passeio por Bagdá
indicava que cerca de 30% das lojas, restaurantes e quiosques de
ambulantes estavam funcionando normalmente.
Já pela manhã, voltou a sinfonia
de buzinas, uma mania local justificada pela falta de respeito aos semáforos que havia desaparecido
desde quarta-feira retrasada.
No tradicional mercado central
de Shorga, entre as pontes da Libertação e dos Mártires, um vendedor espantava com um espanador as moscas de sua barraquinha
de ataif, um doce sírio recheado
de nozes que é mergulhado num
enorme pote de mel.
Na frente, uma fila de quatro
pessoas esperando a vez para comer. No chão, senhores de roupa
tipicamente iraquiana, longos
vestidos cobertos por uma espécie de paletó, ofereciam laranjas
mais mirradas mas mais coloridas do que suas equivalentes brasileiras. Saíam a 250 dinares iraquianos cada (cerca de R$ 0,25).
O item mais comprado nas lojinhas que vendem o pouco de eletrodoméstico que chega ao Iraque
dos países vizinhos, apesar do
embargo, era a antena portátil de
TV, reflexo direto da política de
bombardeios da coalizão anglo-americana, que vem concentrando seus ataques em alvos ligados
às telecomunicações, como emissoras de TV.
O resultado é que a transmissão
doméstica perdeu qualidade, daí
a procura local pelas antenas novas. Lavanderias, lanchonetes e
até algumas casas de câmbio recebiam os fregueses que se aventuraram a sair às ruas, apesar dos
bombardeios, que continuaram
pelo dia inteiro de ontem.
"Ver Bagdá bombardeada não é
novidade para nós", disse Amjad
Majeed, enquanto observava o
comércio. "Ficamos em guerra
por oito anos com o Irã, emendamos com a Guerra do Golfo e desde então sofremos ataques esporádicos dos EUA. Não dá para parar a vida por conta disso."
Ele não está sozinho no raciocínio. Indagados pela Folha ao longo dos últimos dias, diversos bagdalis responderam a mesma coisa. A impressão que dá é que o
morador da cidade encara a possibilidade de ser atingido ou de
morrer num bombardeio como
uma vila próxima de um vulcão
encara as explosões de lava ou
uma cidade litorânea do Caribe lida com a hipótese de um maremoto: mais cedo ou mais tarde
pode acontecer, então o melhor é
não pensar nisso e ir vivendo.
Mesmo os ruídos já não assustam mais tanto assim e lembram
ao repórter as trovoadas que antecedem as chuvas de verão.
Com alguns dias, já é possível
inclusive diferenciar o que é
avião, o que é míssil, o que é bateria antiaérea, o que é bomba atingindo o solo e, nesse caso, mesmo
qual o seu tipo, se a "convencional" ou a "treme-terra".
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