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GERAÇÃO PERDIDA
Sem ter como estudar, adolescente sonha em jogar bola e em lutar contra os americanos
Nassim, o engraxate que quer ser Ronaldo
Enquanto lustra o sapato marrom de um guia do Ministério da
Informação, o menino Nassim
Kamel vai falando a escalação
imaginária que montou em sua
cabeça: "Roberto Carlos, Cafu,
Juninho Paulista, Luizão...".
Ele não sabe que o repórter é
brasileiro e o assunto futebol
nem tinha sido trazido à tona;
está apenas lembrando do que
mais gosta na vida. O iraquiano
de Bagdá cobra 250 dinares iraquianos dos locais e 500 dinares
iraquianos dos ocidentais para
engraxar o par de sapatos.
Aos 16 anos, ele deixou de frequentar a escola pública no terceiro estágio, há três anos, pois
sua família não tinha mais dinheiro para sustentá-lo sem que
ele trabalhasse e também faltavam recursos para livros, transporte, alimentação e roupas.
Sente falta do aprendizado?
"Não muito", responde. Pensa a
respeito? "Não há nada de especial passando por minha cabeça
agora. Penso, sim, na paz iraquiana." O engraxate Nassim
Kamel não está sozinho nas
ruas.
A face mais cruel do embargo
econômico imposto pela ONU
ao Iraque desde 1992 é como este
desmontou a estrutura de ensino do país. Até o fim dos anos
80, apenas 6% das crianças iraquianas não iam à escola. Este
número agora beira os 20%.
Antes, havia transporte e merenda gratuitos; não mais. "As
crianças iraquianas estão anêmicas", disse à Folha Colette Moulaert, pediatra belga que faz trabalho voluntário no país. São 1
milhão de meninos nesta condição, mais do que em países africanos miseráveis como Gana.
Segundo um estudo do Unicef
citado por Dilip Hiro em seu livro "Iraq - In The Eye of The
Storm" (Nation Books, 2002), no
biênio 1997/1998 expressivos
53% das crianças que começaram a estudar não completaram
o ano letivo. O resultado é que,
na década de 90, o índice de pessoas alfabetizadas no Iraque caiu
de 90% para os atuais 66%.
Os que conseguem ir à sala de
aula não estão muito melhores
dos que estão fora. Como a produção de papel faz parte dos
itens embargados pelo Conselho
de Segurança da ONU -os
componentes químicos necessários podem ser utilizados para a
confecção de armas-, não há
cadernos.
Antes, o Ministério da Educação pagava por eles; agora, banca apenas metade do valor. Os
alunos têm, então, de escrever
em versos de recibos, margens
de livros, embrulhos de pão, bulas de remédio. Sempre a lápis,
para que a turma do ano seguinte possa apagar tudo e escrever
por cima. Isso quando há lápis.
Além disso, livros são raros. A
resolução 661 do Conselho de
Segurança da ONU, apresentada
por EUA e Reino Unido e aprovada na década passada, proíbe
que os países-membros da entidade mandem ao Iraque envelopes cujo peso ultrapasse 340 gramas, o que virtualmente impediu que qualquer livro passasse
pelas alfândegas iraquianas.
Os poucos tomos disponíveis
são fotocopiados e distribuídos.
Mas o trabalho extra acaba quebrando as máquinas, que ficam
então inutilizadas, já que peças
de reposição também estão proibidas de serem importadas.
O engraxate Nassim Kamel
não sabe de nada disso, pois pertence à geração nascida pós-embargo, então não chegou a conhecer outra realidade. Como a
maior parte da população, não
faz a ligação entre o fato de o Iraque ter invadido o Kuait e as sanções econômicas que recaíram
sobre o país depois de finda a
guerra como punição ao governo e aos métodos de Saddam
Hussein.
Para ele e para toda uma geração de jovens iraquianos, a miséria por que passa Bagdá agora é
culpa exclusivamente dos norte-americanos e dos britânicos, que
"fizeram o embargo".
É por isso que ele pretende pegar em armas quando a lei permitir, ou seja, a partir dos 18
anos. "Se for convocado para lutar, aceito a missão na hora", disse ele. Enquanto isso, continua
engraxando os sapatos cujos donos consegue convencer com
sua fala mansa e gestos educados.
Em época de guerra, tem conseguido até dez clientes por dia.
Encerrado o conflito, vai pensar
no que fará "quando crescer".
Seu sonho? "Ser Ronaldo".
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