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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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GERAÇÃO PERDIDA

Sem ter como estudar, adolescente sonha em jogar bola e em lutar contra os americanos

Nassim, o engraxate que quer ser Ronaldo

Enquanto lustra o sapato marrom de um guia do Ministério da Informação, o menino Nassim Kamel vai falando a escalação imaginária que montou em sua cabeça: "Roberto Carlos, Cafu, Juninho Paulista, Luizão...".
Ele não sabe que o repórter é brasileiro e o assunto futebol nem tinha sido trazido à tona; está apenas lembrando do que mais gosta na vida. O iraquiano de Bagdá cobra 250 dinares iraquianos dos locais e 500 dinares iraquianos dos ocidentais para engraxar o par de sapatos.
Aos 16 anos, ele deixou de frequentar a escola pública no terceiro estágio, há três anos, pois sua família não tinha mais dinheiro para sustentá-lo sem que ele trabalhasse e também faltavam recursos para livros, transporte, alimentação e roupas.
Sente falta do aprendizado? "Não muito", responde. Pensa a respeito? "Não há nada de especial passando por minha cabeça agora. Penso, sim, na paz iraquiana." O engraxate Nassim Kamel não está sozinho nas ruas.
A face mais cruel do embargo econômico imposto pela ONU ao Iraque desde 1992 é como este desmontou a estrutura de ensino do país. Até o fim dos anos 80, apenas 6% das crianças iraquianas não iam à escola. Este número agora beira os 20%.
Antes, havia transporte e merenda gratuitos; não mais. "As crianças iraquianas estão anêmicas", disse à Folha Colette Moulaert, pediatra belga que faz trabalho voluntário no país. São 1 milhão de meninos nesta condição, mais do que em países africanos miseráveis como Gana.
Segundo um estudo do Unicef citado por Dilip Hiro em seu livro "Iraq - In The Eye of The Storm" (Nation Books, 2002), no biênio 1997/1998 expressivos 53% das crianças que começaram a estudar não completaram o ano letivo. O resultado é que, na década de 90, o índice de pessoas alfabetizadas no Iraque caiu de 90% para os atuais 66%.
Os que conseguem ir à sala de aula não estão muito melhores dos que estão fora. Como a produção de papel faz parte dos itens embargados pelo Conselho de Segurança da ONU -os componentes químicos necessários podem ser utilizados para a confecção de armas-, não há cadernos.
Antes, o Ministério da Educação pagava por eles; agora, banca apenas metade do valor. Os alunos têm, então, de escrever em versos de recibos, margens de livros, embrulhos de pão, bulas de remédio. Sempre a lápis, para que a turma do ano seguinte possa apagar tudo e escrever por cima. Isso quando há lápis.
Além disso, livros são raros. A resolução 661 do Conselho de Segurança da ONU, apresentada por EUA e Reino Unido e aprovada na década passada, proíbe que os países-membros da entidade mandem ao Iraque envelopes cujo peso ultrapasse 340 gramas, o que virtualmente impediu que qualquer livro passasse pelas alfândegas iraquianas.
Os poucos tomos disponíveis são fotocopiados e distribuídos. Mas o trabalho extra acaba quebrando as máquinas, que ficam então inutilizadas, já que peças de reposição também estão proibidas de serem importadas.
O engraxate Nassim Kamel não sabe de nada disso, pois pertence à geração nascida pós-embargo, então não chegou a conhecer outra realidade. Como a maior parte da população, não faz a ligação entre o fato de o Iraque ter invadido o Kuait e as sanções econômicas que recaíram sobre o país depois de finda a guerra como punição ao governo e aos métodos de Saddam Hussein.
Para ele e para toda uma geração de jovens iraquianos, a miséria por que passa Bagdá agora é culpa exclusivamente dos norte-americanos e dos britânicos, que "fizeram o embargo".
É por isso que ele pretende pegar em armas quando a lei permitir, ou seja, a partir dos 18 anos. "Se for convocado para lutar, aceito a missão na hora", disse ele. Enquanto isso, continua engraxando os sapatos cujos donos consegue convencer com sua fala mansa e gestos educados.
Em época de guerra, tem conseguido até dez clientes por dia. Encerrado o conflito, vai pensar no que fará "quando crescer". Seu sonho? "Ser Ronaldo".

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