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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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Jornalistas "encaixados" evidenciam limites da cobertura

DA REPORTAGEM LOCAL

A decisão anglo-americana de "encaixar" meio milhar de jornalistas junto às forças atacantes está dando munição para duas diferentes análises do papel do correspondente em um conflito.
Os relatos desses "encaixados" servem tanto para os que acham que a "verdade" está cedendo ao patriotismo e à propaganda, como aos que afirmam que muito pior do que ter um jornalista junto às tropas seria não ter nenhum.
Para esses últimos, é preciso entender que os "encaixados" só noticiam parte do que acontece e que uma visão mais completa da guerra só é possível juntando todas as peças do quebra-cabeças.
Toda vez que começa uma guerra, colunistas de jornais em todo o mundo correm atrás de um surrado chavão -de que "a primeira vítima é a verdade". A frase foi dita por um senador americano em 1917 e serve de título ao mais conhecido livro sobre cobertura de guerras, "A Primeira Vítima", do jornalista australiano Phillip Knightley, cuja primeira edição é de 1975 e trata principalmente do jornalismo anglo-americano.
Knightley nunca cobriu pessoalmente uma guerra e faz questão de ressaltar isso. Para ele, os correspondentes praticamente nunca conseguiram reportar uma guerra com veracidade. Entre outras coisas, seriam facilmente manipuláveis pelos militares.
A mesma crítica tem sido dirigida ao programa americano de "embedding", "encaixar" jornalistas com as tropas. Logo surgiu o trocadilho "in bed with the Pentagon" (na cama com o Pentágono). Os EUA apostam na empatia entre o correspondente e a tropa.
O maior acesso ao campo de batalha pelos correspondentes não é propriamente uma novidade, pois correspondentes "encaixados" junto às tropas já existiram antes. Já a possibilidade de enviar imagens ao vivo de combates é algo bem mais revolucionário.
Uma opinião diferente sobre o papel do correspondente é dada por um jornalista que participou de um programa de "encaixe" anterior, Max Hastings, que cobriu a guerra pelas Falklands/Malvinas em 1982 junto das tropas britânicas. Hastings também cobriu conflitos em Biafra, no Vietnã, no Oriente Médio e no Chipre.
Em 1982, apenas representantes da mídia britânica acompanharam as tropas. Os EUA agora abriram vagas para 500 jornalistas, cem dos quais estrangeiros.
Para Hastings, o correspondente tenta "montar um quebra-cabeças no qual a maior parte das peças está faltando. A escolha para o correspondente não é entre reportar verdade e falsidade, mas entre reportar um fragmento da realidade ou não fazer nada".
Nesse ponto, o programa de "embedding" tem permitido que várias peças do quebra-cabeças sejam encontradas, servindo até para matizar declarações oficiais.
Por exemplo, o principal analista militar do "The New York Times", Michael R. Gordon, no Kuait, escreveu que o avanço a Bagdá estava sendo desacelerado, apesar de oficialmente se dizer que não há uma "pausa". Ao relatar combates em locais como Nassiriah e Basra, os correspondentes também mostram que essas áreas ainda não estão "seguras".
Se o quebra-cabeças continua incompleto, pode-se argumentar que o mesmo acontece com as notícias em tempo de paz, segundo Hastings. "Notícia" não é sinônimo de "verdade". E mesmo em tempo de paz governos e políticos mentem para jornalistas, lembra.
Militares temem que jornalistas comprometam operações divulgando informações que ajudem o inimigo. Não há censura prévia, mas regras para que os correspondentes "encaixados" não divulguem informações que prejudiquem a segurança das tropas.
Durante a guerra pelas Falklands/Malvinas, a BBC divulgou certa vez o exato lugar que os britânicos iriam atacar, o vilarejo de Goose Green. Os soldados ficaram naturalmente irritados. A informação surgiu de um "vazamento" em Londres, não dos correspondentes no local.
Um jornalista americano já foi expulso do Iraque pelos marines por violar as regras, apesar de não ser um dos "encaixados".
Phil Smucker, que trabalhava como free-lance para os jornais "Christian Science Monitor" (dos EUA) e "Daily Telegraph" (do Reino Unido), foi expulso por ter supostamente colocado em perigo uma unidade ao revelar com precisão sua localização.
Em entrevista à CNN, ele disse que a unidade de fuzileiros navais estava 96 km ao sul de Bagdá. Ele e o fotógrafo Andy Nelson tinham comprado um carro no Kuait e burlado a patrulha na fronteira, se misturando a um comboio de marines. O editor Paul van Slambrouck, do "Monitor", publicou nota negando que o repórter tenha divulgado algo comprometedor. (RICARDO BONALUME NETO)

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