São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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ARTIGO

A verdade é que Iasser Arafat já está morto há anos

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Uma vez mais, Iasser Arafat está morrendo. Acreditávamos que tivesse sido morto em 1982, quando a Força Aérea israelense voou por sobre Beirute, atacando edifícios em que acreditavam que ele pudesse estar. As bombas dilaceraram centenas de libaneses inocentes, mas Arafat saiu incólume.
Depois, surgiu a notícia de que ele teria morrido na queda de um avião no deserto da Líbia, mas quem morreu foi o piloto e um guarda-costas que se posicionou para proteger o líder palestino.
Posteriormente, passamos a crer que ele tivesse encontrado seu fim na estrada para Bagdá, quando um coágulo sangüíneo quase fez com que seu coração parasse. Mas médicos jordanianos o trouxeram de volta ao mundo dos vivos. Agora, uma vez mais estamos nos preparando para a morte do velho. No entanto, como o papa, ele parece determinado a durar para sempre.
Trata-se de um homem cansativo, não só nas repetições de sua morte mas igualmente na vida, um homem que se casou com a Revolução -como sua mulher viria a descobrir- em lugar de desenvolver uma estratégia coerente para um povo sob ocupação. E, no final, Arafat se tornou igual a muitos outros líderes árabes (e ao que os israelenses queriam que ele fosse): um pequeno ditador, distribuindo dólares aos seus comparsas envelhecidos mas leais, promovendo falsamente a democracia e se apegando ao poder nas ruínas de seu escritório em Ramallah. Se tivesse feito o que deveria -governado a "Palestina" (as aspas se tornam cada dia mais importantes) de maneira impiedosa, esmagando toda a oposição e aceitando todas as demandas de Israel- agora lhe seria possível visitar não só Jerusalém mas até mesmo Washington.
Pouco depois do famoso aperto de mão no gramado da Casa Branca, eu disse a um amigo que vive em Jerusalém que ele agora teria de viver com Arafat como vizinho. Eu tive de conviver com sua quase ocupação do oeste de Beirute por sete anos. Era a época em que ele prometia devolver todos os refugiados da Palestina pré-1948 a seus lares, em que deliberadamente sacrificou milhares de vidas palestinas em Tel el Zaatar para conquistar a simpatia do mundo, em que tolerava seqüestros de aviões e falava sobre "democracia em meio às armas" e, finalmente, em que abandonou seu pessoal aos capangas de Israel que compunham a Falange.
O rosto de Arafat jamais terá espaço nos muros das universidades, ao contrário de Guevara ou Castro. Há algo de vil em seus traços, e talvez fosse isso que os israelenses vissem, um homem em que se poderia confiar para policiar seu povo nos pequenos bantustões a ele reservado, outro títere para dirigir o espetáculo quando a ocupação se provou cansativa demais. "Será que Arafat é capaz de controlar seu povo?" É isso que os israelenses perguntavam, e o mundo obedientemente repetia a pergunta, sem compreender a verdade: foi precisamente esse o motivo de Arafat ser autorizado a retornar aos territórios ocupados -para "controlar" seu povo.
A única vez em que reagiu adversamente às demandas de americanos e israelenses -quando se recusou a aceitar só 64% dos 22% da Palestina que lhe estavam reservados- voltou triunfantemente a Gaza e permitiu que os israelenses alegassem que lhe havia sido oferecido 95% da área, mas que ele optara pela guerra.
Quando começou a negociar com os israelenses, ele nem sequer havia visto as colônias judaicas, mas decidiu confiar nos americanos, e quando Israel começou a renegar promessas de retirada, ninguém o ajudou. Israel rompeu acordos de retirada cinco vezes.
Então começou a segunda intifada, vieram os atentados suicidas dos palestinos e o 11 de setembro de 2001. Era apenas uma questão de tempo -seis horas, para ser exato- antes de Israel apontar para conexões entre Arafat e Osama bin Laden e alegar que Ariel Sharon também combatia o terrorismo mundial, em sua luta contra o "terrorista" Arafat.
Em um país no qual a palavra "terrorista" é usada de maneira ainda mais promíscua que nos EUA, ela era aplicada a Arafat por todos os funcionários do governo israelense e por todos os jornais de direita fora do país.
Sentado como uma moribunda coruja em seu quartel em Ramallah, Arafat deve ter percebido que lhe cabia uma distinção única. Alguns "terroristas" -Khomeini, por exemplo- morrem de velhice. Outros -como Ghadafi- tornam-se estadistas por cortesia de líderes mendazes como Tony Blair. Outros -poderíamos lembrar Abu Nidal- terminam assassinados. Mas Arafat é o único político a ter começado como "superterrorista", ser transformado da noite para o dia em "superestadista" pelos acordos de Oslo e a seguir devolvido à condição de "superterrorista". Não admira que ele tantas vezes pareça estar perdendo a concentração, cometendo erros factuais, adoecendo.
Como todo ditador, garantiu que não houvesse sucessão clara. O posto poderia caber a Abu Jihad, mas ele foi assassinado pelos israelenses em Túnis. Poderia caber a um dos líderes militantes a quem os israelenses vêm matando com ataques aéreos nos dois últimos anos. Poderia caber, igualmente, a Marwan Barghouti, que acaba de ser preso. E, se os israelenses decidirem que ele deve ser o líder -estejam certos de que os palestinos não têm escolha quanto a isso-, as portas da prisão talvez lhe sejam abertas.
Sim, é possível que Arafat morra. O funeral seria, assim, o usual banho de retórica dolorosa. Mas a verdade, temo, é que Arafat já está morto há muitos anos.

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