São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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KERRY

Com discrição, democrata abriu caminho para retomada das relações com Hanói

BARBARA CROSSETTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

OS REPUBLICANOS GOSTAM de dizer que John F. Kerry, o candidato democrata à Presidência, jamais foi um "astro" no Senado dos EUA. E decerto a afirmação contém uma dose de verdade. Na câmara alta do Congresso, cujos membros muitas vezes se comportam mais como artistas ou pregadores do que como legisladores, Kerry sempre foi um homem silencioso e ponderado, disposto a encarar questões que seus colegas tentam evitar.

Quando ele decidiu concentrar sua atenção em um problema que os americanos precisavam enfrentar, ele estudou as provas em profundidade e trabalhou de maneira firme e metódica para encontrar uma solução, o mais das vezes longe da atenção publicitária e sem pressa de chegar a uma decisão.
Essa parte da história é desconsiderada quando seu adversário republicano, George W. Bush, e até mesmo alguns democratas o acusam de mudar de opinião quanto a diversas questões. O estilo ponderado do senador atraiu zombarias, mas seu histórico indica que, caso coubesse a Kerry a decisão de ir ou não à guerra no Iraque, a decisão demoraria muito mais, e a contribuição de especialistas seria muito maior e mais ampla, do que no caso do presidente Bush.
A tragédia para os democratas talvez venha a ser que, embora Bush leve a culpa por muitas de suas ações apressadas, Kerry, paradoxalmente, é criticado ao mesmo tempo por sua hesitação, por avaliar as conseqüências de suas ações, por mudar de idéia caso as provas e os eventos o justifiquem. Para os democratas preocupados, um estilo cordato e inteligente, mas discreto, às vezes parece insuficiente para enfrentar a campanha mais agressiva e popularesca que Bush vem conduzindo.

Criança nas Nações Unidas
O internacionalismo de Kerry também é motivo de críticas. Filho de um diplomata, educado na França durante os anos de juventude e casado com uma mulher poliglota nascida em Moçambique, ele poderia parecer, visto de fora, como candidato ideal à liderança do mais poderoso país do mundo. Quando criança, foi levado a visitar as Nações Unidas para saborear a atmosfera, relembra uma de suas irmãs. Em conversa com especialistas em política externa, Kerry diz sem hesitar que envolveria mais a ONU nas decisões importantes.
Os republicanos retratam todos esses traços como qualidades negativas, no entanto, e as acusações encontram alguma ressonância entre os americanos, ainda incomodados com os ataques de 2001 e com a relutância dos europeus em seguir a liderança dos EUA na "guerra contra o terrorismo".
Na banda direita do espectro político, Kerry é criticado por sua oposição à Guerra do Vietnã nos anos 60. Ele diz que não chegou a condenar a guerra -essencialmente um conflito civil entre os vietnamitas, causado por motivos ideológicos-, mas sim a maneira pela qual os Estados Unidos intervieram e conduziram os combates. Ele manteve seu interesse na questão, ao longo dos anos, e provavelmente conhece mais sobre o período, hoje, do que qualquer outro político importante. Em razão disso, se recusa a comparar o Iraque ao Vietnã, como fazem outros democratas.
Nos primeiros anos da carreira de Kerry no Senado, poucos assuntos eram mais problemáticos que as questões remanescentes sobre a possibilidade de que o Vietnã continuasse a manter americanos prisioneiros, muito tempo depois que as tropas dos Estados Unidos deixaram o país, em 1973. A questão vinha sendo mantida nas manchetes por um pequeno mas apaixonado lobby formado por famílias de soldados desaparecidos e por políticos conservadores que não desejavam que os Estados Unidos estabelecessem relações diplomáticas ou comerciais com o regime comunista que capturou Saigon em 1975, aprisionou muitos sul-vietnamitas e tentou destruir o sistema de livre mercado no país.

Amarga história do Vietnã
Em 1991, Kerry, que fora vice-governador de Massachusetts e se elegera ao Senado federal em 1985, concordou em enfrentar a questão, para tentar pôr um fim à amarga história do envolvimento de seu país no Vietnã. Ao longo de quase um ano, como presidente de um comitê especial do Senado sobre prisioneiros e desaparecidos de guerra, conhecidos nos Estados Unidos como POW-MIA, ele liderou a mais completa investigação americana a respeito dos assuntos que foram deixados sem solução no Vietnã.
Milhares de documentos americanos da era da guerra foram liberados pela primeira vez para inspeção, e incontáveis especialistas do Departamento da Defesa, da Agência Central de Inteligência (CIA), do Departamento de Estado e de outros órgãos governamentais foram entrevistados ou convocados a depor.
Muitos dos familiares de soldados desaparecidos foram a Washington, de todas as partes dos Estados Unidos, para assistir às audiências, ainda furiosos e acusando o governo de mentir para eles e de abandonar seus parentes a fim de promover uma retirada rápida da Indochina.
"Todo mundo em minha equipe, todo mundo que eu conhecia, achava que eu estava louco e me dizia para não fazer aquilo", disse Kerry em entrevista (a mim) no terceiro trimestre de 1992. Mas, baseado em sua história pessoal -ele serviu na guerra como oficial e saiu condecorado, antes de passar a combater a política americana para o Vietnã-, ele disse que tinha a idéia de que talvez existisse uma maneira confiável e isenta de eliminar as controvérsias que cercavam o tema.
"É uma história fascinante, uma história que não foi contada, uma história incrível", disse. "Esse tema consumiu a política americana por 20 anos." Em 1992, havia registros de mais de 1,5 mil casos em que pessoas que poderiam ser americanas haviam sido avistadas, ao vivo, no Vietnã e nos vizinhos Laos e Camboja. Oficialmente, o governo dos EUA registrava um total de 2.266 cidadãos desaparecidos na guerra e cujos paradeiros eram desconhecidos até então. A maioria dos especialistas acreditava que eles haviam sido mortos, ou que haviam morrido em cativeiro. Àquela altura, o Vietnã estava escavando locais de queda de aviões americanos e enviando ossadas aos Estados Unidos para identificação.
Kerry, um político de centro-esquerda e membro da elite da costa leste americana, duvidava pessoalmente que pudesse existir número considerável de seus compatriotas vivos no Vietnã e aplicou sua considerável inteligência e capacidade de percepção a um esforço para compreender as motivações do lobby POW-MIA. Ele sabia, disse, que as famílias estavam magoadas com os abusos praticados pelo movimento de oposição à guerra, nos anos 60, contra os veteranos que estavam retornando às suas casas.
"Isso me abriu os olhos, porque minhas origens eram muito privilegiadas", disse. "Entrei em contato com muitos veteranos, pessoas comuns e com os membros de minorias que eram veteranos de guerra índios, negros, hispânicos, os homens que haviam arcado com o peso do conflito. Eu vi como eles eram tratados". O senador percebeu que por trás do lobby POW-MIA existia uma sensação de impotência entre as famílias comuns, que continuavam a viver com sua dor.
"Podemos mostrar a eles que o governo é capaz de funcionar", disse. Ele queria conduzir uma investigação que "nos colocasse de novo em contato com as preocupações legítimas dessas pessoas".
Quando o trabalho foi concluído, o relatório atraiu certas críticas dos inimigos ferrenhos do Vietnã, como o senador Robert C. Smith, de New Hampshire, vice-presidente do comitê. Mais tarde, surgiu também a revelação de que o relatório final, publicado no começo de 1993, fora alterado para atender a objeções de Richard Nixon, presidente em 1973, e seu então secretário de Estado, Henry Kissinger. Mas as controvérsias logo se atenuaram.
O resultado final foi um relatório que pôs fim definitivo aos rumores mais irresponsáveis sobre o comportamento dos dois governos, vietnamita e americano, e que reconheceu o fato de que o número de americanos que poderia ter sido deixado para trás era pequeno demais, e que havia questões que permaneceriam para sempre sem resposta.
Kerry abriu caminho para a retomada das relações com Hanói e facilitou a política dos EUA com o Sudeste Asiático em geral. O lobby POW-MIA praticamente desapareceu da cena política. Uma nova era podia começar.
Tudo foi realizado com o mínimo de ruído e publicidade. Em retrospecto, a firmeza e a sensatez de Kerry obtiveram sucesso onde tentativas anteriores fracassaram.
Mas será que esses traços, que continuam a ser marcos do estilo de John Kerry, podem se traduzir naquilo que os americanos vieram a denominar "elegibilidade", na era das declarações curtas para a TV? Os eleitores dos Estados Unidos responderão a essa pergunta nas urnas.


Barbara Crossette é jornalista americana. Dirigiu o escritório do "New York Times" na ONU de 1994 a 2001 e a sucursal em Nova Delhi (Índia) de 1988 a 1991. Em 1991, recebeu o Prêmio George Polk de correspondente estrageiro. É autora, entre outros, de "India Facing the 21st Century" (Indiana University Press).

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