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KERRY
Com discrição, democrata abriu caminho para retomada das relações com Hanói
BARBARA CROSSETTE
ESPECIAL PARA A FOLHA
OS REPUBLICANOS GOSTAM de dizer que John F.
Kerry, o candidato democrata à Presidência, jamais foi
um "astro" no Senado dos EUA. E decerto a afirmação
contém uma dose de verdade. Na câmara alta do Congresso, cujos membros muitas vezes se comportam mais
como artistas ou pregadores do que como legisladores,
Kerry sempre foi um homem silencioso e ponderado, disposto a encarar questões que seus colegas tentam evitar.
Quando ele decidiu concentrar
sua atenção em um problema que
os americanos precisavam enfrentar, ele estudou as provas em
profundidade e trabalhou de maneira firme e metódica para encontrar uma solução, o mais das
vezes longe da atenção publicitária e sem pressa de chegar a uma
decisão.
Essa parte da história é desconsiderada quando seu adversário
republicano, George W. Bush, e
até mesmo alguns democratas o
acusam de mudar de opinião
quanto a diversas questões. O estilo ponderado do senador atraiu
zombarias, mas seu histórico indica que, caso coubesse a Kerry a
decisão de ir ou não à guerra no
Iraque, a decisão demoraria muito mais, e a contribuição de especialistas seria muito maior e mais
ampla, do que no caso do presidente Bush.
A tragédia para os democratas
talvez venha a ser que, embora
Bush leve a culpa por muitas de
suas ações apressadas, Kerry, paradoxalmente, é criticado ao mesmo tempo por sua hesitação, por
avaliar as conseqüências de suas
ações, por mudar de idéia caso as
provas e os eventos o justifiquem.
Para os democratas preocupados,
um estilo cordato e inteligente,
mas discreto, às vezes parece insuficiente para enfrentar a campanha mais agressiva e popularesca que Bush vem conduzindo.
Criança nas Nações Unidas
O internacionalismo de Kerry
também é motivo de críticas. Filho de um diplomata, educado na
França durante os anos de juventude e casado com uma mulher
poliglota nascida em Moçambique, ele poderia parecer, visto de
fora, como candidato ideal à liderança do mais poderoso país do
mundo. Quando criança, foi levado a visitar as Nações Unidas para
saborear a atmosfera, relembra
uma de suas irmãs. Em conversa
com especialistas em política externa, Kerry diz sem hesitar que
envolveria mais a ONU nas decisões importantes.
Os republicanos retratam todos
esses traços como qualidades negativas, no entanto, e as acusações
encontram alguma ressonância
entre os americanos, ainda incomodados com os ataques de 2001
e com a relutância dos europeus
em seguir a liderança dos EUA na
"guerra contra o terrorismo".
Na banda direita do espectro
político, Kerry é criticado por sua
oposição à Guerra do Vietnã nos
anos 60. Ele diz que não chegou a
condenar a guerra -essencialmente um conflito civil entre os
vietnamitas, causado por motivos
ideológicos-, mas sim a maneira
pela qual os Estados Unidos intervieram e conduziram os combates. Ele manteve seu interesse na
questão, ao longo dos anos, e provavelmente conhece mais sobre o
período, hoje, do que qualquer
outro político importante. Em razão disso, se recusa a comparar o
Iraque ao Vietnã, como fazem outros democratas.
Nos primeiros anos da carreira
de Kerry no Senado, poucos assuntos eram mais problemáticos
que as questões remanescentes
sobre a possibilidade de que o
Vietnã continuasse a manter
americanos prisioneiros, muito
tempo depois que as tropas dos
Estados Unidos deixaram o país,
em 1973. A questão vinha sendo
mantida nas manchetes por um
pequeno mas apaixonado lobby
formado por famílias de soldados
desaparecidos e por políticos conservadores que não desejavam
que os Estados Unidos estabelecessem relações diplomáticas ou
comerciais com o regime comunista que capturou Saigon em
1975, aprisionou muitos sul-vietnamitas e tentou destruir o sistema de livre mercado no país.
Amarga história do Vietnã
Em 1991, Kerry, que fora vice-governador de Massachusetts e se
elegera ao Senado federal em
1985, concordou em enfrentar a
questão, para tentar pôr um fim à
amarga história do envolvimento
de seu país no Vietnã. Ao longo de
quase um ano, como presidente
de um comitê especial do Senado
sobre prisioneiros e desaparecidos de guerra, conhecidos nos Estados Unidos como POW-MIA,
ele liderou a mais completa investigação americana a respeito dos
assuntos que foram deixados sem
solução no Vietnã.
Milhares de documentos americanos da era da guerra foram liberados pela primeira vez para inspeção, e incontáveis especialistas
do Departamento da Defesa, da
Agência Central de Inteligência
(CIA), do Departamento de Estado e de outros órgãos governamentais foram entrevistados ou
convocados a depor.
Muitos dos familiares de soldados desaparecidos foram a Washington, de todas as partes dos
Estados Unidos, para assistir às
audiências, ainda furiosos e acusando o governo de mentir para
eles e de abandonar seus parentes
a fim de promover uma retirada
rápida da Indochina.
"Todo mundo em minha equipe, todo mundo que eu conhecia,
achava que eu estava louco e me
dizia para não fazer aquilo", disse
Kerry em entrevista (a mim) no
terceiro trimestre de 1992. Mas,
baseado em sua história pessoal
-ele serviu na guerra como oficial e saiu condecorado, antes de
passar a combater a política americana para o Vietnã-, ele disse
que tinha a idéia de que talvez
existisse uma maneira confiável e
isenta de eliminar as controvérsias que cercavam o tema.
"É uma história fascinante, uma
história que não foi contada, uma
história incrível", disse. "Esse tema consumiu a política americana por 20 anos." Em 1992, havia
registros de mais de 1,5 mil casos
em que pessoas que poderiam ser
americanas haviam sido avistadas, ao vivo, no Vietnã e nos vizinhos Laos e Camboja. Oficialmente, o governo dos EUA registrava um total de 2.266 cidadãos
desaparecidos na guerra e cujos
paradeiros eram desconhecidos
até então. A maioria dos especialistas acreditava que eles haviam
sido mortos, ou que haviam morrido em cativeiro. Àquela altura, o
Vietnã estava escavando locais de
queda de aviões americanos e enviando ossadas aos Estados Unidos para identificação.
Kerry, um político de centro-esquerda e membro da elite da costa
leste americana, duvidava pessoalmente que pudesse existir número considerável de seus compatriotas vivos no Vietnã e aplicou sua considerável inteligência
e capacidade de percepção a um
esforço para compreender as motivações do lobby POW-MIA. Ele
sabia, disse, que as famílias estavam magoadas com os abusos
praticados pelo movimento de
oposição à guerra, nos anos 60,
contra os veteranos que estavam
retornando às suas casas.
"Isso me abriu os olhos, porque
minhas origens eram muito privilegiadas", disse. "Entrei em contato com muitos veteranos, pessoas
comuns e com os membros de
minorias que eram veteranos de
guerra índios, negros, hispânicos,
os homens que haviam arcado
com o peso do conflito. Eu vi como eles eram tratados". O senador percebeu que por trás do
lobby POW-MIA existia uma sensação de impotência entre as famílias comuns, que continuavam
a viver com sua dor.
"Podemos mostrar a eles que o
governo é capaz de funcionar",
disse. Ele queria conduzir uma investigação que "nos colocasse de
novo em contato com as preocupações legítimas dessas pessoas".
Quando o trabalho foi concluído, o relatório atraiu certas críticas dos inimigos ferrenhos do
Vietnã, como o senador Robert C.
Smith, de New Hampshire, vice-presidente do comitê. Mais tarde,
surgiu também a revelação de que
o relatório final, publicado no começo de 1993, fora alterado para
atender a objeções de Richard Nixon, presidente em 1973, e seu então secretário de Estado, Henry
Kissinger. Mas as controvérsias
logo se atenuaram.
O resultado final foi um relatório que pôs fim definitivo aos rumores mais irresponsáveis sobre
o comportamento dos dois governos, vietnamita e americano, e
que reconheceu o fato de que o
número de americanos que poderia ter sido deixado para trás era
pequeno demais, e que havia
questões que permaneceriam para sempre sem resposta.
Kerry abriu caminho para a retomada das relações com Hanói e
facilitou a política dos EUA com o
Sudeste Asiático em geral. O
lobby POW-MIA praticamente
desapareceu da cena política.
Uma nova era podia começar.
Tudo foi realizado com o mínimo de ruído e publicidade. Em retrospecto, a firmeza e a sensatez
de Kerry obtiveram sucesso onde
tentativas anteriores fracassaram.
Mas será que esses traços, que
continuam a ser marcos do estilo
de John Kerry, podem se traduzir
naquilo que os americanos vieram a denominar "elegibilidade",
na era das declarações curtas para
a TV? Os eleitores dos Estados
Unidos responderão a essa pergunta nas urnas.
Barbara Crossette é jornalista americana. Dirigiu o escritório do "New York Times" na ONU de 1994 a 2001 e a sucursal
em Nova Delhi (Índia) de 1988 a 1991.
Em 1991, recebeu o Prêmio George Polk
de correspondente estrageiro. É autora,
entre outros, de "India Facing the 21st
Century" (Indiana University Press).
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