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Ícones da direita e da esquerda analisam economia dos EUA
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
DOIS DOS MAIORES NOMES do estudo da
economia e da ciência social dos EUA, um de
direita -o Prêmio Nobel de Economia Milton
Friedman (1976)-, outro de esquerda -o
professor emérito do Centro de Direito da
Universidade de Georgetown Norman Birnbaum-, examinaram, em entrevistas separadas concedidas à Folha, a atuação socioeconômica de George W. Bush, as expectativas
em caso de vitória de John Kerry e as perspectivas futuras para a economia americana.
Como era previsível, as visões de ambos
são bastante contrastantes, conforme sua
orientação ideológica. Friedman, um dos
pais do monetarismo, defende os cortes de
impostos e a redução do papel do Estado na
economia. Birnbaum, por sua vez, preconiza
a aplicação de políticas governamentais para
corrigir as imperfeições do mercado.
Milton Friedman - Os cortes de
impostos foram uma ótima idéia,
sobretudo a medida de redução
da carga tributária que incide sobre os dividendos distribuídos
pelas empresas, que foi uma ação
em direção a um sistema fiscal
mais eficiente e equitativo.
Por outro lado, o fato de Bush
ter realizado um aumento rápido
e significativo dos gastos públicos
é ruim. Assim, as políticas econômicas domésticas da atual administração não são todas boas. Todavia o aspecto mais importante
de seu programa foram as reduções de impostos, que favoreceram o crescimento econômico.
Thomas Birnbaum - Não, as reduções de impostos não foram
uma boa idéia. Primeiro, elas foram injustas porque foram feitas
para favorecer os muito ricos, as
grandes empresas e os poderosos
fundos de investimentos, possibilitando que eles escapassem ao
pagamento de uma parcela justa
de impostos, e seria benéfico para
a sociedade que eles a pagassem.
Segundo, os cortes de impostos
criaram déficits indesejáveis, que,
a médio e longo prazos, ameaçarão a habilidade do governo de
exercer corretamente suas funções, além de forçarem uma elevação das taxas de juros.
Friedman - Trata-se de uma
questão de semântica. Quem não
paga impostos não recebe os benefícios dos cortes de impostos. E
as pessoas que respondem pela
maior parcela da carga tributária
têm direito à parte mais importante dos cortes de impostos.
Como é possível fazer uma redução de impostos razoavelmente justa se os que mais pagam não
podem ser favorecidos? Deve-se
ressaltar que 1% ou 2% dos contribuintes pagam em torno de
45% dos impostos. O argumento
democrata tem razões eleitorais.
Em 1986, quando houve o único
real corte de impostos na história
recente dos EUA antes de Bush, a
maior porcentagem de impostos
que uma pessoa ou uma empresa
era compelida a pagar era de 28%.
Hoje ela é de 39%. Nos últimos 15
ou 20 anos, houve um aumento
dos impostos que incidem sobre
os ricos. Assim, o corte de impostos tem de beneficiá-los.
Birnbaum - Sim, não há a menor
dúvida a esse respeito. Bush nada
fez para estimular a economia,
aumentar o capital humano americano e cuidar do bem-estar geral
da população. Ele está interessado
apenas em reduzir o papel do Estado na economia, não em torná-la mais eficiente ou produtiva.
Friedman - Creio que as ações
econômicas de Bush venham a ser
significativamente diferentes. Ele
dará muito mais ênfase à reforma
da Previdência Social, mudando
em direção a um sistema que permitirá a introdução de uma privatização parcial das contas pessoais, tirando do Estado parte do
peso financeiro que porta hoje.
Trata-se de algo muito importante, pois o sistema atual é fadado à falência. Ele não é tolerável
nem sustentável a médio prazo.
Com isso, as pessoas se tornariam
responsáveis pelas condições de
sua aposentadoria. Todo o sistema de Previdência Social se baseia
num arranjo perigoso, visto que
os jovens pagam hoje os benefícios de que gozam os mais velhos.
Precisamos desenvolver um sistema em que os mais velhos, que
têm mais dinheiro guardado do
que os jovens, financiem sua aposentadoria. Essa é uma medida
salutar para a economia como um
todo. O grande erro do passado
foi tornar as contribuições previdenciárias compulsórias.
Birnbaum - Isso é extremamente
difícil de prever, pois, por exemplo, se houver uma maioria democrata no Senado, isso reduzirá
bastante sua margem de manobra. Sua habilidade para introduzir novas políticas econômicas
também dependerá do tipo de
oposição que os democratas farão
no caso de uma derrota de Kerry.
Assim, não podemos correr o
risco de fazer previsões ousadas.
Não espero, todavia, que as principais diretrizes de seu governo
sejam alteradas. Além disso, Bush
também poderá interpretar sua
reeleição como uma aprovação de
suas políticas, o que o motivaria a
aprofundar medidas já tomadas.
Por exemplo, ele deverá levar
adiante seu projeto de privatizar
parcialmente a Previdência Social
e buscar tornar os cortes de impostos permanentes. Se isso ocorrer, haverá um aumento das desigualdades sociais, já que o governo terá ainda menos poder para
influenciar a economia do país.
Friedman - É duro julgar o que
Kerry faria como presidente. Não
sou especialista em políticas econômicas preconizadas pelos democratas e devo basear minha
resposta exclusivamente no que
tenho lido sobre seu programa,
em suas declarações públicas e
em seu histórico como senador.
Ele insiste em que manterá o sistema de Previdência Social atual,
o que é uma medida em direção
ao fracasso. Não é possível ter um
sistema positivo sem um número
crescente de pessoas que o financiem. Uma grande parcela dos jovens americanos sabe que o sistema está a caminho da falência e
que não receberá muita coisa do
Estado quando se aposentar.
Birnbaum - Kerry tentará mudar
um pouco as políticas econômicas domésticas, dando mais ênfase às áreas sociais. Mas isso também depende da composição da
Câmara e, sobretudo, da do Senado. Contudo é certo que, se Kerry
for eleito, haverá uma briga interna no Partido Democrata e, provavelmente, em seu próprio gabinete sobre as políticas econômicas a serem aplicadas.
Essa disputa oporá aqueles que
são favoráveis a um maior papel
do Estado na economia e a investimentos sociais aos que vêm de
Wall Street e são mais cuidadosos
em relação aos déficits e ao aumento das despesas do Estado.
Ainda não podemos afirmar
quem vencerá essa briga.
Friedman - Antes de tudo, devo
dizer que Bush não teve uma política deliberada de expansão dos
déficits. Devemos analisá-los separadamente. O déficit público
cresceu por conta de dois aspectos: primeiro, o colapso do mercado de ações e a recessão do início da década, que foi um legado
do governo precedente, de [Bill]
Clinton [1993-2001]; segundo, as
despesas necessárias para financiar o esforço militar no Iraque e a
segurança interna.
Não é possível imaginar que alguém seja contrário ao aumento
dos gastos com a segurança. Isso é
algo imprescindível e correto. Afinal, o 11 de Setembro exigia uma
resposta clara do governo no que
tange à proteção da população.
O déficit externo é positivo para
os EUA e para o dólar, pois financia o crescimento econômico do
país e fortalece a moeda por meio
da entrada maciça de divisas, que,
obrigatoriamente são convertidas
em dólar, aumentando a demanda pela moeda. Ele significa ainda
que outros países, sobretudo a
China, crêem que os EUA ainda
sejam o Estado mais sólido do
planeta, o que é positivo.
Birnbaum - O déficit externo mina a estabilidade do dólar. Este é
hoje mantido em níveis razoáveis
graças às compras estrangeiras de
ações e de títulos do governo dos
EUA, mas essa tendência vem-se
enfraquecendo. Esse declínio permitiu o fortalecimento do euro.
Essa política terá um impacto
deletério na economia americana.
Provavelmente, as taxas de juros
terão de ser elevadas nos EUA, o
que prejudica os setores da sociedade que precisam endividar-se
para investir ou para comprar
moradias. Isso poderia, portanto,
provocar um efeito recessivo sobre a economia americana.
Friedman - Isso não acarreta distorções econômicas e só significa
que o país gasta parte de seus ativos com um propósito que não é
produtivo. Os esforços de proteção do território e dos interesses
nacionais produzem segurança
interna, aviões, armas etc., mas isso não acrescenta nada ao bem-estar das famílias americanas.
Porém não devemos dizer que
esses gastos produzem distorções, pois se trata do uso correto
de recursos públicos numa situação em que o país está em perigo.
Uma cidade que financia sua polícia não produz distorções econômicas, visto que esse gasto é crucial para protegê-la. Todavia isso
também significa que, em razão
do 11 de Setembro e da mudança
da situação de segurança americana, a população tem de sacrificar parte de sua qualidade de vida.
Birnbaum - É claro que ele gera
distorções econômicas, já que o
dinheiro investido não é destinado às áreas mais produtivas da sociedade. É verdade que, a curto
prazo, os gastos provocam um
aumento dos níveis de emprego.
Porém, a médio e longo prazos, os
efeitos econômicos serão ruins.
É um engano pensar que Bush é
um adepto do keynesianismo
[teoria que defende a necessidade
de políticas governamentais de
estímulo à demanda] só porque
aumentou os gastos públicos.
Afinal, [o economista britânico
John Maynard] Keynes [1883-1946] insistia na necessidade de
estimular a demanda dos consumidores, enquanto Bush acredita
que a solução seja pôr dinheiro
nas mãos dos ricos, pois eles investirão o que é necessário para a
economia. No entanto isso não
parece estar ocorrendo.
Friedman - Indubitavelmente, o
impacto da alta é negativo para a
economia americana, mas não é
algo extraordinário. A importação de petróleo constitui uma pequena fração do consumo total
dos EUA e, por conseguinte, uma
parcela ínfima de sua economia.
Se o mesmo tivesse ocorrido há 30
anos, talvez o impacto tivesse sido
mais grave. Mesmo assim, a alta
do preço do petróleo precisa ser
contida, pois provoca efeitos econômicos negativos.
Birnbaum - O aumento do preço
do petróleo reduz o poder de
compra dos americanos e do governo, diminuindo a margem de
manobra para investimentos em
outras áreas. A longo prazo, isso
compelirá a administração a deixar de investir em setores mais
necessitados simplesmente por
falta de dinheiro para fazê-lo.
Friedman - Não acredito que os
altos preços do petróleo tenham a
capacidade de abortar o atual ciclo de crescimento americano.
Eles poderão causar um abrandamento dos níveis de crescimento,
mas não abortarão o ciclo atual.
Por outro lado, creio que o governo não esteja fazendo nada específico para combater o risco de
interrupção do ciclo de crescimento. No entanto as políticas do
Fed têm sido positivas e protegem
a economia de sobressaltos. Suas
políticas buscam manter os objetivos de inflação e taxas de juros
baixas, o que é positivo.
Birnbaum - Não, não creio que
eles tenham feito um bom trabalho até aqui porque, embora tenha feito esforços para manter as
taxas de juros em níveis relativamente baixos, [Alan] Greenspan
[presidente do Fed] não consegue
ver a necessidade de fazer gastos
sociais e de buscar redistribuir a
renda. Só assim seria possível aumentar o poder de compra das
pessoas, o que talvez contribuísse
para que a economia se reciclasse.
E o governo federal pouco fez
acerca desse risco.
Friedman - A dúvida é saber se a
China representa uma ameaça
econômica ou uma enorme oportunidade para os EUA. A resposta
depende do que ocorrerá politicamente na China. Se o movimento
em direção a uma economia mais
aberta for acompanhado de outro
em direção a um sistema político
mais livre, a China será uma grande oportunidade para os EUA.
A China conta com muitas pessoas capacitadas em diferentes
áreas, com recursos naturais extraordinários e com uma indústria crescente. Ou seja, será um
maravilhoso parceiro comercial
para os EUA desde que seu sistema político se torne mais livre.
Por outro lado, se a tendência
atual de abertura político-econômica na China for abandonada e o
país voltar a ser totalitário, ela
perderá suas vantagens econômicas e se transformará numa forte
ameaça econômica para os EUA.
No momento, todavia, sou muito otimista em relação à China,
que vem fazendo considerável
progresso econômico nos últimos
anos. Obrigatoriamente, a abertura econômica gera mais liberdade
política. Os novos líderes chineses
têm ciência disso e conhecem o
Ocidente bem mais profundamente que seus predecessores.
Birnbaum - No momento, a China é uma bênção para a economia
americana. Afinal, os chineses
compram títulos do Tesouro
americano e tecnologia e fornecem bens de consumo a preços
muito baixos. Se formos a qualquer loja americana, veremos que
a quantidade de produtos chineses é assustadora. A longo prazo,
porém, a China será a única superpotência que poderá enfrentar
o poderio econômico americano.
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