São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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Ícones da direita e da esquerda analisam economia dos EUA

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

DOIS DOS MAIORES NOMES do estudo da economia e da ciência social dos EUA, um de direita -o Prêmio Nobel de Economia Milton Friedman (1976)-, outro de esquerda -o professor emérito do Centro de Direito da Universidade de Georgetown Norman Birnbaum-, examinaram, em entrevistas separadas concedidas à Folha, a atuação socioeconômica de George W. Bush, as expectativas em caso de vitória de John Kerry e as perspectivas futuras para a economia americana.
Como era previsível, as visões de ambos são bastante contrastantes, conforme sua orientação ideológica. Friedman, um dos pais do monetarismo, defende os cortes de impostos e a redução do papel do Estado na economia. Birnbaum, por sua vez, preconiza a aplicação de políticas governamentais para corrigir as imperfeições do mercado.

Milton Friedman - Os cortes de impostos foram uma ótima idéia, sobretudo a medida de redução da carga tributária que incide sobre os dividendos distribuídos pelas empresas, que foi uma ação em direção a um sistema fiscal mais eficiente e equitativo.
Por outro lado, o fato de Bush ter realizado um aumento rápido e significativo dos gastos públicos é ruim. Assim, as políticas econômicas domésticas da atual administração não são todas boas. Todavia o aspecto mais importante de seu programa foram as reduções de impostos, que favoreceram o crescimento econômico.

Thomas Birnbaum - Não, as reduções de impostos não foram uma boa idéia. Primeiro, elas foram injustas porque foram feitas para favorecer os muito ricos, as grandes empresas e os poderosos fundos de investimentos, possibilitando que eles escapassem ao pagamento de uma parcela justa de impostos, e seria benéfico para a sociedade que eles a pagassem.
Segundo, os cortes de impostos criaram déficits indesejáveis, que, a médio e longo prazos, ameaçarão a habilidade do governo de exercer corretamente suas funções, além de forçarem uma elevação das taxas de juros.

Friedman - Trata-se de uma questão de semântica. Quem não paga impostos não recebe os benefícios dos cortes de impostos. E as pessoas que respondem pela maior parcela da carga tributária têm direito à parte mais importante dos cortes de impostos.
Como é possível fazer uma redução de impostos razoavelmente justa se os que mais pagam não podem ser favorecidos? Deve-se ressaltar que 1% ou 2% dos contribuintes pagam em torno de 45% dos impostos. O argumento democrata tem razões eleitorais.
Em 1986, quando houve o único real corte de impostos na história recente dos EUA antes de Bush, a maior porcentagem de impostos que uma pessoa ou uma empresa era compelida a pagar era de 28%. Hoje ela é de 39%. Nos últimos 15 ou 20 anos, houve um aumento dos impostos que incidem sobre os ricos. Assim, o corte de impostos tem de beneficiá-los.

Birnbaum - Sim, não há a menor dúvida a esse respeito. Bush nada fez para estimular a economia, aumentar o capital humano americano e cuidar do bem-estar geral da população. Ele está interessado apenas em reduzir o papel do Estado na economia, não em torná-la mais eficiente ou produtiva.

Friedman - Creio que as ações econômicas de Bush venham a ser significativamente diferentes. Ele dará muito mais ênfase à reforma da Previdência Social, mudando em direção a um sistema que permitirá a introdução de uma privatização parcial das contas pessoais, tirando do Estado parte do peso financeiro que porta hoje.
Trata-se de algo muito importante, pois o sistema atual é fadado à falência. Ele não é tolerável nem sustentável a médio prazo. Com isso, as pessoas se tornariam responsáveis pelas condições de sua aposentadoria. Todo o sistema de Previdência Social se baseia num arranjo perigoso, visto que os jovens pagam hoje os benefícios de que gozam os mais velhos.
Precisamos desenvolver um sistema em que os mais velhos, que têm mais dinheiro guardado do que os jovens, financiem sua aposentadoria. Essa é uma medida salutar para a economia como um todo. O grande erro do passado foi tornar as contribuições previdenciárias compulsórias.

Birnbaum - Isso é extremamente difícil de prever, pois, por exemplo, se houver uma maioria democrata no Senado, isso reduzirá bastante sua margem de manobra. Sua habilidade para introduzir novas políticas econômicas também dependerá do tipo de oposição que os democratas farão no caso de uma derrota de Kerry.
Assim, não podemos correr o risco de fazer previsões ousadas. Não espero, todavia, que as principais diretrizes de seu governo sejam alteradas. Além disso, Bush também poderá interpretar sua reeleição como uma aprovação de suas políticas, o que o motivaria a aprofundar medidas já tomadas.
Por exemplo, ele deverá levar adiante seu projeto de privatizar parcialmente a Previdência Social e buscar tornar os cortes de impostos permanentes. Se isso ocorrer, haverá um aumento das desigualdades sociais, já que o governo terá ainda menos poder para influenciar a economia do país.

Friedman - É duro julgar o que Kerry faria como presidente. Não sou especialista em políticas econômicas preconizadas pelos democratas e devo basear minha resposta exclusivamente no que tenho lido sobre seu programa, em suas declarações públicas e em seu histórico como senador.
Ele insiste em que manterá o sistema de Previdência Social atual, o que é uma medida em direção ao fracasso. Não é possível ter um sistema positivo sem um número crescente de pessoas que o financiem. Uma grande parcela dos jovens americanos sabe que o sistema está a caminho da falência e que não receberá muita coisa do Estado quando se aposentar.

Birnbaum - Kerry tentará mudar um pouco as políticas econômicas domésticas, dando mais ênfase às áreas sociais. Mas isso também depende da composição da Câmara e, sobretudo, da do Senado. Contudo é certo que, se Kerry for eleito, haverá uma briga interna no Partido Democrata e, provavelmente, em seu próprio gabinete sobre as políticas econômicas a serem aplicadas.
Essa disputa oporá aqueles que são favoráveis a um maior papel do Estado na economia e a investimentos sociais aos que vêm de Wall Street e são mais cuidadosos em relação aos déficits e ao aumento das despesas do Estado. Ainda não podemos afirmar quem vencerá essa briga.




Friedman - Antes de tudo, devo dizer que Bush não teve uma política deliberada de expansão dos déficits. Devemos analisá-los separadamente. O déficit público cresceu por conta de dois aspectos: primeiro, o colapso do mercado de ações e a recessão do início da década, que foi um legado do governo precedente, de [Bill] Clinton [1993-2001]; segundo, as despesas necessárias para financiar o esforço militar no Iraque e a segurança interna.
Não é possível imaginar que alguém seja contrário ao aumento dos gastos com a segurança. Isso é algo imprescindível e correto. Afinal, o 11 de Setembro exigia uma resposta clara do governo no que tange à proteção da população.
O déficit externo é positivo para os EUA e para o dólar, pois financia o crescimento econômico do país e fortalece a moeda por meio da entrada maciça de divisas, que, obrigatoriamente são convertidas em dólar, aumentando a demanda pela moeda. Ele significa ainda que outros países, sobretudo a China, crêem que os EUA ainda sejam o Estado mais sólido do planeta, o que é positivo.

Birnbaum - O déficit externo mina a estabilidade do dólar. Este é hoje mantido em níveis razoáveis graças às compras estrangeiras de ações e de títulos do governo dos EUA, mas essa tendência vem-se enfraquecendo. Esse declínio permitiu o fortalecimento do euro.
Essa política terá um impacto deletério na economia americana. Provavelmente, as taxas de juros terão de ser elevadas nos EUA, o que prejudica os setores da sociedade que precisam endividar-se para investir ou para comprar moradias. Isso poderia, portanto, provocar um efeito recessivo sobre a economia americana.




Friedman - Isso não acarreta distorções econômicas e só significa que o país gasta parte de seus ativos com um propósito que não é produtivo. Os esforços de proteção do território e dos interesses nacionais produzem segurança interna, aviões, armas etc., mas isso não acrescenta nada ao bem-estar das famílias americanas.
Porém não devemos dizer que esses gastos produzem distorções, pois se trata do uso correto de recursos públicos numa situação em que o país está em perigo. Uma cidade que financia sua polícia não produz distorções econômicas, visto que esse gasto é crucial para protegê-la. Todavia isso também significa que, em razão do 11 de Setembro e da mudança da situação de segurança americana, a população tem de sacrificar parte de sua qualidade de vida.

Birnbaum - É claro que ele gera distorções econômicas, já que o dinheiro investido não é destinado às áreas mais produtivas da sociedade. É verdade que, a curto prazo, os gastos provocam um aumento dos níveis de emprego. Porém, a médio e longo prazos, os efeitos econômicos serão ruins.
É um engano pensar que Bush é um adepto do keynesianismo [teoria que defende a necessidade de políticas governamentais de estímulo à demanda] só porque aumentou os gastos públicos.
Afinal, [o economista britânico John Maynard] Keynes [1883-1946] insistia na necessidade de estimular a demanda dos consumidores, enquanto Bush acredita que a solução seja pôr dinheiro nas mãos dos ricos, pois eles investirão o que é necessário para a economia. No entanto isso não parece estar ocorrendo.



Friedman - Indubitavelmente, o impacto da alta é negativo para a economia americana, mas não é algo extraordinário. A importação de petróleo constitui uma pequena fração do consumo total dos EUA e, por conseguinte, uma parcela ínfima de sua economia. Se o mesmo tivesse ocorrido há 30 anos, talvez o impacto tivesse sido mais grave. Mesmo assim, a alta do preço do petróleo precisa ser contida, pois provoca efeitos econômicos negativos.

Birnbaum - O aumento do preço do petróleo reduz o poder de compra dos americanos e do governo, diminuindo a margem de manobra para investimentos em outras áreas. A longo prazo, isso compelirá a administração a deixar de investir em setores mais necessitados simplesmente por falta de dinheiro para fazê-lo.





Friedman - Não acredito que os altos preços do petróleo tenham a capacidade de abortar o atual ciclo de crescimento americano. Eles poderão causar um abrandamento dos níveis de crescimento, mas não abortarão o ciclo atual.
Por outro lado, creio que o governo não esteja fazendo nada específico para combater o risco de interrupção do ciclo de crescimento. No entanto as políticas do Fed têm sido positivas e protegem a economia de sobressaltos. Suas políticas buscam manter os objetivos de inflação e taxas de juros baixas, o que é positivo.

Birnbaum - Não, não creio que eles tenham feito um bom trabalho até aqui porque, embora tenha feito esforços para manter as taxas de juros em níveis relativamente baixos, [Alan] Greenspan [presidente do Fed] não consegue ver a necessidade de fazer gastos sociais e de buscar redistribuir a renda. Só assim seria possível aumentar o poder de compra das pessoas, o que talvez contribuísse para que a economia se reciclasse. E o governo federal pouco fez acerca desse risco.



Friedman - A dúvida é saber se a China representa uma ameaça econômica ou uma enorme oportunidade para os EUA. A resposta depende do que ocorrerá politicamente na China. Se o movimento em direção a uma economia mais aberta for acompanhado de outro em direção a um sistema político mais livre, a China será uma grande oportunidade para os EUA.
A China conta com muitas pessoas capacitadas em diferentes áreas, com recursos naturais extraordinários e com uma indústria crescente. Ou seja, será um maravilhoso parceiro comercial para os EUA desde que seu sistema político se torne mais livre.
Por outro lado, se a tendência atual de abertura político-econômica na China for abandonada e o país voltar a ser totalitário, ela perderá suas vantagens econômicas e se transformará numa forte ameaça econômica para os EUA.
No momento, todavia, sou muito otimista em relação à China, que vem fazendo considerável progresso econômico nos últimos anos. Obrigatoriamente, a abertura econômica gera mais liberdade política. Os novos líderes chineses têm ciência disso e conhecem o Ocidente bem mais profundamente que seus predecessores.

Birnbaum - No momento, a China é uma bênção para a economia americana. Afinal, os chineses compram títulos do Tesouro americano e tecnologia e fornecem bens de consumo a preços muito baixos. Se formos a qualquer loja americana, veremos que a quantidade de produtos chineses é assustadora. A longo prazo, porém, a China será a única superpotência que poderá enfrentar o poderio econômico americano.

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