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O cinema está morto? E isso é novidade?

A nostalgia sempre esteve associada ao cinema

A.O. SCOTT
ENSAIO

Presume-se amplamente que o cinema vem sofrendo um declínio de qualidade e que as exceções a regra não passam de acidentes felizes. Simplesmente não se fazem mais filmes como os de antigamente.

Isso é verdade, em termos estritamente técnicos. O maquinário da produção e distribuição está passando por transformações profundas, parte do processo acelerado e convulsivo de digitalização de tudo o que existe sob o sol. Essas transformações suscitam entusiasmo, perplexidade e também uma dose de lamento.

Numa resenha de "Roubo nas Alturas" e "Melancolia" -e o fato de os dois filmes terem sido analisados concomitantemente pode ao mesmo tempo confirmar e refutar o pessimismo dos cinéfilos voltados ao passado-, Anthony Lane, da revista "The New Yorker", lamenta o eclipse iminente do hábito de ir ao cinema, ritual coletivo ostensivamente ameaçado pelo hábito de assistir a filmes em casa.

Mais ou menos na mesma época, uma manchete no blog do crítico Roger Ebert anunciava "A Morte Repentina do Cinema". A tristeza de Ebert é moderada por resignação. "O sonho do celulóide pode continuar a viver em minhas esperanças, mas o vídeo comanda o campo", ele escreve.

Ebert, que já defendeu a superioridade estética do cinema sobre o vídeo, reconhece que "minha guerra acabou, meu lado perdeu, e é importante considerar isso no mundo real".

Entre as novidades recentes nas livrarias estão duas coletâneas de textos de críticos destacados, com títulos que deixam entender que o cinema é coisa do passado. O volume de ensaios e resenhas de Pauline Kael, publicado pela Library of America, é intitulado "The Age of Movies", período que evidentemente durou entre meados dos anos 1950 e o início dos anos 1990, quando Kael deixou seu cargo na "New Yorker". Um livro de Dave Kehr (que escreve uma coluna sobre home vídeo para o "New York Times") é intitulado "When Movies Mattered" e reúne seus artigos dos anos 1970 e 1980, quando ele escrevia principalmente para o "The Chicago Reader".

A transição da tecnologia analógica para a digital teve o efeito paradoxal de tornar a história do cinema mais ampla e prontamente acessível que nunca. Mas a própria proximidade contribui para a desvalorização do presente. Ao invés de assistir a seriados de TV, não deveríamos estar dedicando nossa atenção a filmes que comprovaram seu valor ao longo dos anos?

Com certeza. A alternativa é uma adesão acrítica ao novo pelo novo, um desprezo superficial pela tradição e o desconhecimento das belezas desta. Mas existe um risco igual de que essas belezas nos façam ignorar as energias que nos cercam.

É claro que nenhum astro de cinema moderno pode equiparar-se ao charme durão e cínico de Humphrey Bogart ou ao humor cáustico de Bette Davis, e é claro que nada nos filmes feitos hoje parece ou soa como no passado. Mas porque -ou como- deveria? Toda forma de arte se transforma. Entretanto, as artes também possuem uma habilidade de resistir a essas transformações, absorvê-las e desmentir as previsões de sua morte.

Mas há algo no caráter essencialmente moderno do cinema que o torna vulnerável aos temores de obsolescência. Quando a imagem chega aos olhos do espectador, ela já pertence ao passado, assumindo o status de algo recuperado. A nostalgia está embutida no ritual de ir ao cinema, razão pela qual, o próprio ritual de ir ao cinema vem sendo objeto de nostalgia.

Não parece ser por acaso que tantos filmes aderem a essa disposição doce e também amarga. "A Invenção de Hugo Cabret", de Martin Scorsese, que visita os primórdios do cinema, estreou nos Estados Unidos no mesmo dia de novembro que "The Artist", o filme mudo de Michel Hazanavicius sobre o cinema mudo. Os dois filmes capturam a magia dos tempos passados, e, para isso, ambos fazem uso das tecnologias mais recentes.

"A Invenção de Hugo Cabret", previsto para ser lançado na maioria dos países entre novembro e março, é repleto de efeitos digitais e pode ser visto em 3D, mas leva o público de volta ao tempo de George Méliès, o cineasta visionário cujo senso inventivo de espetáculo o tornou um pioneiro dos efeitos visuais na virada do século 20. "The Artist" é uma criação em preto e branco, em tela estreita, que conta a história agridoce de um ídolo do cinema mudo cuja carreira é ameaçada pela chegada do som.

É desnecessário dizer que a chegada do cinema falado representa a primeira morte do cinema, uma tragédia que Hazanavicius tem a sensibilidade de reconhecer e o humor para ironizar. O cinema sobreviveu ao som, assim como sobreviveu à televisão, ao VCR e a todo outro diagnóstico terminal. E vai sobreviver às reviravoltas atuais, também. Como posso ter certeza? Porque dentro de dez, 20 ou 50 anos, alguém certamente estará reclamando que já não se fazem filmes como antigamente. Ou seja, como se fazem agora.

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