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Ensaio

HOLLAND COTTER

Da adversidade, floresce esperança

ABIDJÃ, Costa do Marfim - O artista plástico Salif Diabagaté está ao lado de uma pilha de lixo encharcado diante de seu ateliê na capital financeira da Costa do Marfim. Ele puxa uma ponta de tecido que se projeta para fora, tirando uma lona pintada com símbolos e palavras.

"Fiz isto para que parecesse uma camisa tradicional de caçador, com amuletos e talismãs", diz ele, apontando para bolsinhas costuradas sobre a superfície da pintura. "Os soldados devem ter achado que era perigoso. Magia ruim."

Os soldados em questão são tropas do governo que, um ano antes, invadiram seu ateliê durante o auge de uma década de guerra civil. Diabagaté, que tem pouco mais de 40 anos, estava em Berlim para promover uma mostra quando "a crise", como é conhecida, explodiu. Ele teria que produzir trabalhos novos, mas ninguém estava comprando. "A arte é aquilo do qual você abre mão quando enfrenta dificuldades de dinheiro", diz ele.

Mesmo em tempos estáveis a vida pode ser difícil para os artistas na África ocidental. Mas Abidjã, na Costa do Marfim, Dacar, no Senegal, e Bamaco, no Mali, são saturados de arte. Murais recobrem muros públicos e as feiras livres estão repletas de cerâmicas, trabalhos em metal e trabalhos de tecelagem. Retratos de heróis culturais (Che Guevara, Mandala, Obama, Madonna) estão à venda em toda parte.

Faltam, contudo, os elementos que compõem um cenário contemporâneo típico no Ocidente: galerias, museus, colecionadores, periódicos, críticos e um público constante e interessado. E o grau de isolamento em que vivem os artistas individuais é quase inconcebível para um ocidental.

Redes locais de artistas são formadas, criando coletivos como o Huit Facettes, em Dacar. Esses grupos podem ser difíceis de ser localizados por visitantes, mas existem. Também existem alguns poucos espaços alternativos, concebidos segundo um modelo ocidental, em muitos casos com apoio ocidental. É o caso da Raw Material Company, em Dacar, do Appartement 22, em Rabat (Marrocos), e do Zoma Contemporary Center, em Adis Abeba (Etiópia).

E existe um mecanismo de grande escala para expor o trabalho deles: mostras amplas de arte, normalmente bienais. Financiadas por dinheiro público -boa parte vindo da França, que ainda exerce influência em suas antigas colônias.

Mas a África continua estranhamente à parte, mesmo nesses fóruns internacionais. Os mais antigos eventos desse tipo acontecendo na África, o Dak'Arte, no Senegal, e a Bienal de Fotografia, em Bamaco, se limitam a expor principalmente artistas do continente. De fora da África, esses eventos são vistos como provincianos; em casa, são tidos como feitos para estrangeiros.

Eles apontam para uma pergunta que se coloca à arte contemporânea aqui: como a África pode juntar-se ao mundo, em seus próprios termos?

No Senegal, no período pós-colonial imediato, as artes estiveram na base da estratégia de desenvolvimento nacional.

Sob o selo Negritude, Léopold Sédar Senghor, o poeta formado em Paris que em 1960 tornou-se o primeiro presidente do país, promoveu uma estética que fundia cultura africana, consciência racial negra e modernismo europeu. Mas depois de ele deixar o poder, em 1980, o apoio do Estado acabou. Tendências de arte resistente tinham surgido, e a Negritude saiu de moda.

Muitos artistas estão fartos de sua versão mais recente, o Afrocentrismo. O pintor senegalês Soly Cisse, nascido em 1969, expõe seus trabalhos globalmente e divide seu tempo entre Dacar e a Europa. Ele aponta para um sistema de ensino de arte que tem veteranos da Negritude como professores. "A arte é uma maneira de olhar para o mundo, quer você seja branco ou negro", diz ele. "Na África, a identidade é uma prisão."

Mas basta caminhar pelas ruas de Dacar, Abidjã ou Bamaco, e a primeira impressão que se tem é de vitalidade pulsante.

Essa vitalidade ficou aparente na mais recente bienal de fotografia de Bamaco, antes do golpe militar e das incursões separatistas que mergulharam o país em turbulência. Foi um evento intensa e tipicamente africano. Foram incluídas imagens vívidas de pesadelos ecológicos em toda a África ocidental. Uma seção norte-africana documentou os primeiros dias da Primavera Árabe. As fotos deixaram claro que ninguém está mais atento para os problemas e potenciais da África que os próprios africanos.

Mas a mostra evidenciou um dilema básico com que muitos artistas africanos se defrontam. A bienal seria inteiramente africana, ou pelo menos majoritariamente africana.

A decisão suscitou protestos. Por que a arte africana precisa continuar a ser encerrada em um canto etnográfico, rotulada por seu lugar de origem? Uma bienal africana não seria mais um exemplo de como o mercado global -ou seja, ocidental- defende a diversidade mas insiste na separação, impõe o isolamento sob a forma de aceitação?

Também houve sólidos argumentos em contrário, como por exemplo, que uma bienal apenas africana idealmente permitiria que os africanos substituíssem o afropessimismo visto comumente na mídia internacional por uma visão mais ampla do continente.

E assim foi a bienal de 2011, na medida em que levou o espectador dos ciber-revolucionários de Túnis para depósitos de lixo eletrônico em Acra e para Áfricas de fantasia, futuras e passadas. Mas a própria bienal não teve muito público: as notícias precoces sobre ataques terroristas no norte do Mali afastaram viajantes. Mesmo assim, com a previsão de uma exposição "decorrente da bienal" a ser aberta em Paris, o clima era de otimismo.

O clima em Abidjã também é de otimismo. As eleições foram tranquilas e as pessoas falam de um país em recuperação, especulando que em pouco tempo a cidade possa voltar a ser a metrópole que era antes da crise.

Há indícios, porém, de que o pior inimigo da arte africana possa ser a própria África. O Museu de Civilizações da Costa do Marfim, perto do centro da cidade, foi fechado para inventário, depois de saqueado. Seu saguão principal estava vazio, com a exceção de alguns caixotes e algumas esculturas de Christian Lattier -o maior artista plástico marfinense do século 20.

Sua escultura pública mais conhecida era um relevo gigante intitulado "As três idades da Costa do Marfim", criado para o aeroporto internacional de Abidjã. Quando o aeroporto foi reformado, em 2000, o relevo foi levado embora. Durante anos ficou do lado de fora do aeroporto, um emaranhado de cordas gastas e metal em processo de enferrujamento (recentemente a obra foi levada à biblioteca pública da cidade). De tempos em tempos, Salif Diabagaté leva visitantes para vê-la.

Astro de um momento cultural africano nobre e semi-esquecido, Lattier é o herói de Diabagaté. Salvar a escultura de Lattier é uma questão pessoal para Diabagaté. É também uma questão de preservar a história da arte africana e de garantir o futuro dela e o seu próprio.

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