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Inteligência / Nadim Shehadi

Aplicando as lições do Iraque

LONDRES

Não há dúvida de que a experiência da Guerra do Iraque não deve ser repetida. Esta convicção vem movendo a política adotada em relação à Síria. Mas o Ocidente aprendeu as lições erradas com o Iraque. A intervenção militar dos EUA no Iraque em 2003, o caos e as ondas de matanças sectárias que vieram a seguir assombram o Ocidente e o mergulham na indecisão. Enquanto isso, danos irreparáveis estão sendo impostos à sociedade síria.

O mundo assiste passivo enquanto o regime sírio reprime o levante com violência, intensificando as tensões sectárias e o radicalismo, enquanto sanções erodem a economia e enfraquecem a classe média. Quanto mais tempo isso durar, mais a sociedade síria vai se aproximar da concretização da previsão do presidente Bashar Assad de que a queda de seu regime seria pior que "dezenas de Afeganistões".

Há uma lição diferente a ser tirada da política em relação ao Iraque antes de 2003, o período em que Saddam Hussein virou aliado do Ocidente pelo fato de combater o Irã e, por medo da situação desconhecida que poderia advir no caso de sua queda, foi mantido no poder mesmo depois de ter invadido o Kuait.

Entre 1991 e 2003, o Ocidente permitiu que o partido Baath, de Saddam, empurrasse a sociedade iraquiana de volta à Idade da Pedra. O Ocidente contribuiu para esse processo com suas políticas de contenção. Sanções castigaram a população iraquiana e fortaleceram o regime. Sob o programa petróleo por alimentos Saddam se fortaleceu, distribuindo cupons de petróleo a seus apoiadores em países árabes e financiando seus lobistas no Ocidente. A desvalorização da moeda significou que a classe média foi jogada na pobreza, os que tiveram sorte foram impelidos a emigrar.

Durante a Guerra do Golfo, em 1991, os argumentos contra ir a Bagdá e desalojar Saddam, após a libertação do Kuait, foram semelhantes aos argumentos empregados hoje para não intervir na Síria. O medo do que viria a seguir manteve Saddam no poder, com a esperança secreta de que ele fosse derrubado internamente por meio de um golpe militar ou um assassinato. Os iraquianos foram encorajados a sublevar-se contra o regime. Porém, quando o fizeram, pensando que os americanos lhes dariam apoio, os Estados Unidos ignoraram as dezenas de milhares de xiitas e curdos que eram massacrados. Isso agravou as tensões étnicas e sectárias e o radicalismo.

Uma transição iraquiana para a democracia teria sido muito mais tranquila em 1991, apesar de o país estar saindo de duas guerras na época. A política em relação ao Iraque antes disso incluía diálogos com o regime e apoio ocidental ao regime na guerra entre Irã e Iraque. Enquanto Saddam foi aliado do Ocidente, permitiu-se que ele massacrasse os curdos e outras minorias. Os pesadelos da campanha de Anfal contra os curdos e de Halabja -onde mais de 5.000 curdos morreram num ataque com gás tóxico- assombram o mundo e fazem parte do legado que o Iraque precisa enfrentar. O regime sobreviveu matando seu próprio povo, erodindo suas instituições e esvaziando a sociedade civil. Duas gerações inteiras de iraquianos sofreram devido ao engajamento do Ocidente com Saddam e seu apoio a ele desde 1980.

Há um preço a ser pago quando se mantém uma ditadura no poder e há um preço também depois de sua deposição. O número de baixas no Iraque antes de 2003 é diferente dos números após 2003, mas o preço pago pela população foi altíssimo. O Iraque após 2003 estava se recuperando não apenas da invasão, mas de 24 anos de um regime ditatorial brutal. A inação em relação à Síria terá consequências semelhantes.

Os sírios não poderão libertar-se do regime de Assad sem apoio internacional. O regime não recuará diante de nada para conservar-se no poder. Tampouco devemos esquecer que a Síria, juntamente com o Irã e outros países da região, contribuiu para o caos pós-2003 no Iraque, ao apoiar a insurgência. A Síria também facilitou a infiltração de terroristas favoráveis à Al Qaeda.

Mas uma Síria pós-Assad não enfrentará os mesmos desafios regionais. A cultura política mudou radicalmente desde os tempos em que Saddam Hussein, Hosni Mubarak, Zine el-Abidine Ben Ali, Ali Abdullah Saleh, Muammar Gaddafi e outros déspotas comandavam seus países e se fortaleciam através da chantagem e da extorsão.

No entanto, ainda é mantida a ilusão de que negociações com Assad poderão conduzir a uma transição pacífica e que o regime vai cooperar. O regime vai continuar a lançar palavras vazias no ar, na esperança de que o vento sopre a seu favor e que ele consiga reprimir a revolta.

As lições do Iraque mostram que permitir que esta ilusão continue é um erro enorme.

Nadim Shehadi é membro-associado de Chatham House, o Instituto Real de Assuntos Internacionais, em Londres.

Envie comentários para intelligence@nytimes.com.

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