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Inteligência/Elif Shafak

Na encruzilhada

De todas as profissões tidas em alta estima pela sociedade moderna, poucas parecem ter caído tão em desgraça quanto a do chamado "especialista". Economistas acadêmicos são acusados de estarem em descompasso com o mundo real e de não terem antevisto a crise econômica se formando. Estudiosos internacionais são achincalhados por sua incapacidade de prever a Primavera Árabe ou a crise na zona do euro. Reguladores bancários são vistos com desconfiança desde que o colapso financeiro desmascarou sua inépcia. Aos olhos da opinião pública, os especialistas em muitos campos se juntaram às desagradáveis fileiras dos políticos, executivos de Wall Street e operadores de telemarketing.

Doris Lessing disse certa vez que a literatura é a análise após o fato. Se for assim, ser especialista significa analisar antes do fato. Mas, conforme o mundo salta de crise em crise, não podemos dizer onde termina o "antes" e onde começa o "depois".

Estamos numa "encruzilhada", com toda a incerteza que isso implica. Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, disse neste mês que "com os riscos crescendo a cada dia, estamos numa encruzilhada". Logo antes da eleição grega, o líder esquerdista Alexis Tsipras anunciou: "A Europa está numa encruzilhada, a mesma encruzilhada na qual esteve na década de 1930, durante o rescaldo da crise econômica de 1929". No mês passado, o canal de TV France 24 exibiu um debate intitulado "Ou vai ou racha: a Europa na encruzilhada".

Mas não só a Europa. Em todo o Oriente Médio, sociedades antes pacatamente totalitárias enfrentam futuros imprevisíveis. Na Tunísia, onde a Primavera Árabe nasceu, há um acalorado debate sobre quanta influência o islamismo terá na reformulação da sociedade. E no Egito, será que um regime patriarcal, autoritário e introspectivo será substituído por um novo regime patriarcal, autoritário e introspectivo? Será que o brutal governo sírio cairá em breve?

A globalização acarreta um monte de ansiedades e ressentimentos entrelaçados. Mais de 1 milhão de britânicos mudaram para a Espanha em tempo integral ou durante parte do ano. Hoje, muitos estão ressentidos pelo fato de o custo de vida aumentar e o valor das suas casas de veraneio cair. A Alemanha está ansiosa por resgatar a Grécia, ao passo que a imprensa grega rotineiramente demoniza os alemães.

A incerteza que muitos países enfrentam serve como terreno fértil para o extremismo e a paranoia política. As redes sociais fervilham com teorias conspiratórias, os jovens de todos os lugares estão pessimistas com o seu futuro, e forças antidemocráticas estão em ascensão. Um relatório publicado em novembro pelo Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento salientava a redução do apoio à democracia e ao livre mercado em países onde a crise é aguda, como Eslováquia, Eslovênia e Hungria. Na Grécia, o partido de extrema direita Aurora Dourada reteve na eleição de 17 de junho a sua bancada de 18 deputados (num total de 300), apesar de um funcionário seu ter recentemente estapeado uma parlamentar e atirado um copo d'água em outra, ao vivo, pela TV. Na França, a Frente Nacional obteve cadeiras parlamentares pela primeira vez em 25 anos. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de direita, é cada vez mais popular entre os jovens.

As ideologias direitistas são galvanizadas pela crise econômica, pelos repetidos fracassos dos políticos e pela desconfiança geral em relação às instituições existentes.

Num recente relatório, a Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância alertou: "A retórica xenófoba é agora parte do debate predominante, e extremistas estão cada vez mais usando as mídias sociais para canalizar suas opiniões". Navegando recentemente na internet, topei com dezenas de sites acusando banqueiros judeus de terem causado a crise financeira e afirmando que judeus ricos estariam agora trocando os EUA pela China.

Ajeitando um pouco as palavras, as mesmas acusações são pronunciadas por fanáticos de todos os países acerca de inimigos imaginários de todos os tipos.

Não só os cidadãos comuns como também as elites podem se afastar do pluralismo. O influente filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas tem feito repetidos apelos para "salvar a dignidade da democracia". Ele está particularmente preocupado com "a concentração de poder nas mãos de um círculo fechado de líderes governamentais que impõem seus acordos aos Parlamentos nacionais", enfraquecendo assim os princípios da democracia pluralista.

O atual ambiente alimenta a intolerância, a busca por bodes expiatórios e a xenofobia. A tendência de transformar Estados-nações em entidades políticas insulares, temerosas da diversidade e desconfiadas dos esforços supranacionais levaram a duas devastadoras guerras mundiais na Europa no último século.

Haverá outra encruzilhada pela frente, na qual a opção será clara: quem tiver fé escolherá a democracia e a defenderá a todo custo. Quem não tiver fé estará pronto a abrir mão dela por um tempo, ou mesmo para sempre.

Elif Shafak é autora de oito romances. Seu livro mais recente, "Honor", foi lançado em abril. Envie comentários para intelligence@nytimes.com

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