São Paulo, segunda-feira, 01 de fevereiro de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Dois mundos, ligados porém dispersos

Ho Chi Minh Eu estava no Vietnã, mas poderia ser qualquer outro país em desenvolvimento. Saí do café com ar-condicionado, uma espécie de imitação do Starbucks chamado Highlands, e me deparei com a sujeira áspera do mundo trabalhador.
Na barraca de café junto à rua, onde me equilibrei em uma banqueta de plástico, galinhas ciscavam sob as mesas plásticas. Uma mulher varria tocos de cigarro para a sarjeta, onde eles se juntavam aos restos que ela havia acabado de jogar.
Motoristas de táxi, parecendo elegantes em suas camisas brancas e gravatas vermelhas, estacionavam para ingerir uma substância doce feita de leite condensado misturado com café forte servido de garrafas plásticas. Uma grande risada acompanhou o embarque de um cachorro na frente de uma moto scooter já sobrecarregada.
A moto partiu, acrescentando seu zumbido à cacofonia de duas rodas do Vietnã, que naquele momento incluía um ciclista com um grande volume de coroas de flores: bem, eu pensei, se ele for atropelado por um caminhão o enterro será uma beleza!
Ah, suspirei, o mundo real. A pobreza é real e generalizada, e cada vez mais próxima dos shopping centers frios, reluzentes e cheios de marcas, onde os endinheirados passeiam. Mas é claro que esses enormes átrios da opulência, que são indiferenciáveis de Xangai a São Paulo, não são menos "reais" que a confusão empoeirada da qual eles se erguem. Se chamarmos de reais a luta e o trabalho, mas de artificial a afluência do ato de comprar em excesso, talvez seja porque ficamos sem palavras.
Deve-se dizer que o contraste muitas vezes causa confusão: o barraco em ruínas ao lado do balneário cinco-estrelas; a vasta mansão ao lado da favela; o "condomínio fechado" ao lado do depósito de lixo; a loja de departamentos cheia de marcas ao lado do mercado onde agricultores rudes oferecem uma alface ou um maço de couve. Os economistas chamam isso de "desenvolvimento em enclaves". Mas como se conectam os enclaves a seus arredores? Como se dissemina a riqueza?
Esse é um dos grandes enigmas de nosso tempo. A tecnologia e a movimentação de capital instantânea potencializaram e enriqueceram alguns. Os iates se erguem na maré crescente da globalização, mas os pequenos botes, muitas vezes, não. A rápida industrialização no século 19 provocou uma reação na forma de sindicatos, que, com o tempo, se mostraram eficientes para distribuir os benefícios.
Mas a rápida globalização do século 21 tende a escapar a qualquer controle organizado ou canalização, como ilustrou a grande fusão financeira de 2008. Os governos nacionais, para não falar nos sindicatos nacionais, são mais fracos que as forças globais. A social-democracia, com suas compensações, um triunfo do século 20, perdeu força para o individualismo. Mas, é claro, a perspectiva não é totalmente sombria. Na Ásia, centenas de milhões de pessoas foram retiradas da pobreza abjeta pela injeção vital de capital internacional. Da China à África, ONGs trabalham duro para aumentar a consciência dos cidadãos sobre seus direitos trabalhistas e ambientais, além de seus direitos como mulheres.
A tecnologia, sinônimo de abertura, limitou a capacidade de governos repressivos agirem com a ferocidade do século 20. A conectividade deu a mais pessoas o poder de criar.
Ainda assim, surpreendo-me ao ver como o mundo é distorcido. A ligação entre trabalho e recompensa foi rompida. Uma enorme quantidade de dinheiro é feita com toda a rapidez por meio de acordos confortáveis que florescem em um ambiente financeiro global incontrolável. Barack Obama pode ralhar contra os bancos ambiciosos, e os políticos ocidentais podem aprovar regras mais rígidas, mas as forças que eles combatem parecem mais fortes que eles.
A China, que a sua maneira é um sinônimo de século 21, é um estudo de como os ricos conseguem benesses enquanto os pobres labutam.
E assim corremos adiante, ligados pela tecnologia, mas dispersos em enclaves, em direção a um dia de prestação de contas que parece inevitável, mas cuja forma não posso imaginar.


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