São Paulo, segunda-feira, 01 de fevereiro de 2010

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ENSAIO

SAM TANENHAUS

EUA testemunham explosão de raiva

Como tantas boas narrativas, as histórias políticas costumam ter tramas simples, mas que convidam a interpretações múltiplas, às vezes conflitantes. E assim foi em Massachusetts. Primeiro veio a surpreendente vitória do republicano Scott Brown na eleição especial para o Senado, em 19 de janeiro, no que foi visto como uma rebelião populista.
Apenas dois dias depois, a Suprema Corte revogou uma reforma bipartidária de financiamento eleitoral, de 2002, liberando empresas, sindicatos e outras organizações para doar quantias ilimitadas a campanhas políticas.
O presidente dos EUA, Barack Obama, com seu recém-assumindo tom populista, disse que a decisão favorecia "interesses poderosos" que ameaçavam "afogar as vozes dos americanos". Os republicanos argumentaram que os democratas também têm seus apoiadores endinheirados -em Hollywood ou então nos laboratórios farmacêuticos que apoiam a ameaçada reforma da saúde de Obama.
Essas duas surpresas ilustram uma divisão cada vez maior na política dos EUA, exemplificada pelas brigadas do movimento "Tea Party" que ajudaram a engendrar a vitória de Brown e também pelos liberais frustrados com o primeiro ano do governo Obama.
O consenso pós-partidário que parecia possível há um ano deu lugar a uma curiosa harmonia da discordância -já que ambos os lados denunciam os resgates financeiros do governo e os bônus de Wall Street. Mas, na verdade, dois diferentes protestos estão em curso. Um, mais visível à esquerda, tem raízes no populismo tradicional que defende um governo forte. O outro, à direita, brota de uma cepa purista da política americana que desconfia do governo como um todo.
Durante a Grande Depressão, sentimentos populistas foram capturados por figuras como Francis Everett Townsend, que criou uma campanha nacional pela aposentadoria por idade; a ideia ajudou a moldar a Lei da Seguridade Social.
O mais talentoso político populista da época, Huey Long, falava de forma tocante sobre os "criminosos" despejos rurais que havia visto quando menino na Louisiana e defendia que todos os americanos recebessem uma "bolsa-propriedade" e uma renda anual garantida.
Compare isso à erupção televisionada e tantas vezes repetida de Rick Santelli, o repórter da CNBC a quem se costuma atribuir a origem do movimento "Tea Party", no começo de 2009. Ele esbravejava não contra o resgate dos bancos ou das montadoras de Detroit, e sim contra o plano de Obama para ajudar mutuários inadimplentes.
"Isto são os EUA", disse Santelli. "Quantos de vocês querem pagar pela hipoteca do seu vizinho que tem um banheiro extra e não consegue pagar suas contas?"
Um desapreço paralelo pela elite anima tanto o populismo quanto o purismo. Mas eles encontram essa elite em locais diversos. Os populistas deploram os ricos, como os executivos que têm colhido bônus imensos. Os puristas não gostam da classe governante -políticos que abandonam seus princípios centrais e fazem acordos com o outro lado.
Os republicanos estão agora sob assalto. Os novos insurgentes os acusam de cumplicidade com a gastança e o gigantismo do governo. Uma complicação adicional é que é cada vez mais difícil dizer precisamente onde termina a vida privada e onde começa o governo. Ambos se tornaram tão inter-relacionados que hoje é possível ser a favor e contra o governo grande, às vezes ao mesmo tempo.
Um exemplo memorável ocorreu em meados de 2009, quando o deputado republicano Bob Inglis atraiu a ira dos insurgentes em uma reunião pública. Um eleitor, irritado, disse a ele: "Tire suas mãos governamentais do meu Medicare" -o seguro-saúde governamental para aposentados.
Na época, esse incidente foi amplamente citado como um sinal da ignorância da população acerca da saúde pública. Mas pode ser interpretado de forma diferente -como reflexo da impotência que muitos americanos sentem num momento de dependência crescente em relação a um governo crescente: que dá cobertura médica, mas pode tirá-la ou reduzir seus benefícios.
Nesse ambiente, não surpreende que nenhum partido goze de muita lealdade. Brown parece agudamente ciente disso. No seu discurso de vitória, creditou-a à vontade da "maioria independente". Se tal maioria existe mesmo é outra questão.
Arthur Schlesinger Jr. escreveu que, mesmo durante a Grande Depressão, os americanos se apegaram à "desesperada convicção íntima de que em algum lugar uma resposta poderia ser encontrada". É nessa busca, talvez, que populistas e puristas podem encontrar um terreno comum.


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