São Paulo, segunda-feira, 01 de agosto de 2011

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS
ANÁLISE DO NOTICIÁRIO

Lembranças douradas, verdades duras

Por JOHN F. BURNS
Era o idílio levado na minha mochila durante quase 40 anos viajando pelo mundo: lembranças douradas da Inglaterra onde eu cresci -de tudo que o país e seus monarcas, estadistas, filósofos, escritores, inventores e exploradores tinham dado ao mundo.
E aí, voltar para casa depois de passar metade de uma vida como correspondente no exterior a fim de experimentar um tipo de embotamento que decorre quando a memória colide com verdades menos felizes.
Nem de longe, estou sozinho em lamentar a perda de sensibilidade e cortesia, o embrutecimento da vida na esfera pública, o desdém cheio de termos rudes que parece ter se infiltrado em nossas ruas, jornais e meios de comunicação e o abandono de padrões que atinge até mesmo grandes instituições nacionais, como o Parlamento e a Scotland Yard.
Grande parte disso me veio à mente num momento em que o país luta para absorver as últimas reviravoltas no escândalo que envolveu o império jornalístico de Rupert Murdoch. Alguns comentaristas cobraram que o foco fosse dirigido a temas mais importantes, como a crise financeira europeia.
O primeiro-ministro David Cameron, enredado no escândalo, apontou nessa direção quando, junto com seu "mea culpa" no Parlamento, fez também um apelo para que a oposição trabalhista se voltasse para "questões com as quais as pessoas realmente se importam".
Mas outros sentiram um mal-estar bem mais profundo nas revelações de que jornalistas e detetives particulares espionaram caixas postais de celulares; que executivos corporativos foram incapazes de contê-los ou mesmo que foram ativamente coniventes; que policiais podem ter abafado a verdade; e, talvez o mais deprimente, que políticos tiraram o corpo fora, preferindo obter favores de Murdoch, na crença de que o apoio dele seria indispensável para conquistar e manter o poder.
Cameron, certamente, teve de percorrer um longo caminho até admitir a gravidade do escândalo. Mas coube ao líder trabalhista, Ed Miliband, sugerir que o caso é o sintoma de uma corrupção de valores generalizada na vida pública e na vida privada da Grã-Bretanha.
Miliband disse que as três grandes crises que assolaram o cotidiano nos últimos três anos -a quebra bancária de 2008, o furor sobre despesas parlamentares fraudulentas em 2009 e o escândalo dos tabloides- tinham raízes numa cultura que propiciou uma "fuga às responsabilidades básicas", permeando "de alto a baixo" a vida britânica, e que "passa a mensagem de que vale tudo, que não importa o certo ou o errado, que todos nós podemos entrar nessa por interesse próprio, desde que consigamos nos safar".
"O que", disse ele, "um jovem apenas começando a vida, tentando acertar, vai pensar ao ver um político burlando o sistema de despesas, um banqueiro ganhando milhões sem merecer ou um barão da imprensa abusando da confiança de pessoas comuns?".
Três compatriotas meus que passaram anos no exterior apontaram algumas das coisas que os perturbaram ao regressar: policiais se comportando com arrogância e indiferença das quais eles não se lembravam na infância; jogadores de futebol de primeiro nível se comportando como bandidos dentro e fora do campo; milionários artistas de rádio e TV, inclusive da BBC, usando uma linguagem grosseira e, pelo menos em uma ocasião na memória recente, humilhando um comediante idoso meramente para se divertirem; bandos de jovens selvagens vagabundeando no centro das cidades; uma cultura ligada à cerveja entre os jovens da nação, que fazem da embriaguez pública um flagelo.
A lista é longa, e não são fáceis de discernir suas causas mais profundas.
O fim do império britânico, nas décadas de 1950 e 1960, juntamente com a gradual erosão de divisões de classe outrora rígidas, libertou o país de velhas âncoras e deixou muitas pessoas em uma busca de novas certezas.
O colapso do ensino público precipitou uma epidemia de comportamento antissocial entre os jovens urbanos.
Três décadas depois de Margaret Thatcher assumir o poder numa cruzada para ressuscitar padrões tradicionais, há muitos sinais de que ela pode ter sido um breve clarão numa trajetória de resto descendente.
Um homem que passou uma temporada na Downing Street ao longo do último ano, na qualidade de assessor de Cameron, examinou o escândalo do "News of the World" e ofereceu uma conclusão reveladora.
A Grã-Bretanha, disse ele, se parece acima de tudo com uma "sociedade pós-comunista" -liberta das velhas verdades, mas ainda sem ter em vista algo duradouro que as substitua. Eis aí um veredicto desanimador em uma semana de profundo desalento.


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