São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2008

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Justiça islâmica ganha espaço no Reino Unido

Por ELAINE SCIOLINO

LONDRES - A mulher vestida de preto queria um divórcio islâmico. Contou ao juiz religioso que seu marido a agredia, a xingava e desejava sua morte.
Mas o marido era contra, e o acadêmico islâmico responsável pelo caso parecia decidido a manter o casal unido. Até que ela sacou sua arma secreta: o pai.
Entrou um homem barbudo, com vestes longas, que descreveu o genro como um homem agressivo, que havia traído a sua filha, fugido da polícia e humilhado a sua família. O juiz prontamente recomendou o divórcio.
Apesar do inflamado debate nacional a respeito dos limites à tolerância religiosa e da preponderância do direito britânico, os pilares da sharia (lei islâmica) são cada vez mais aplicados ao cotidiano.
A Igreja Anglicana tem seus próprios tribunais eclesiásticos. Durante mais de um século, os judeus britânicos tiveram suas "battei din" (casas de julgamento). Mas desde que o reverendíssimo Rowan Williams, chefe da igreja do país, sugeriu em fevereiro que alguns aspectos da sharia deveriam ser adotados junto com o Judiciário tradicional, o governo enfrenta o furor da opinião pública, tentando acalmar os críticos e ao mesmo tempo assegurar à população islâmica que suas tradições têm lugar na sociedade britânica.
"Não há absolutamente nada no direito inglês que impeça as pessoas de obedecerem aos princípios da sharia se assim desejarem, desde que não entrem em conflito com o direito inglês", disse em outubro o ministro da Justiça, Jack Straw. Mas ele acrescentou que o direito britânico irá "sempre permanecer supremo" e que, "a despeito da crença religiosa, somos todos iguais perante a lei".
Tanto conservadores quanto liberais argumentam que os tribunais islâmicos adotam procedimentos misteriosos, sem responsabilidades claras, uniformidade nas decisões ou treinamento adequado dos juízes.
Enquanto o debate continua, esses tribunais se popularizam entre a população islâmica. Alguns dos conselhos informais "como as cortes são chamadas" fornecem orientações e dirimem disputas entre muçulmanos há mais de duas décadas. Nos últimos anos, porém, eles se expandiram em quantidade e importância. Alguns acadêmicos islâmicos dizem que o número de processos aumentou 50% desde 2005.
Quase todos os casos envolvem mulheres que querem o divórcio. Os tribunais atraem as muçulmanas que buscam escapar de casamentos sem amor - e elas vêm não só do Reino Unido, mas às vezes da Dinamarca, da Irlanda, da Holanda e da Alemanha.
Também há disputas por bens, heranças, causas trabalhistas e lesões corporais. Os tribunais evitam processos penais que poderiam acarretar punições como chibatadas ou apedrejamento.
Na verdade, a maior parte desses julgamentos não tem validade à luz do direito civil britânico. Mas, para as partes envolvidas, tais tribunais oferecem algo ainda mais importante: o aval divino.
"Não queremos dar a impressão de que os muçulmanos são uma comunidade isolada buscando um sistema jurídico à parte neste país", disse Shahid Raza, que arbitra disputas em um centro islâmico no subúrbio de Ealing, zona oeste de Londres. "Não estamos pedindo um direito penal da sharia - cortar mãos ou matar a pedradas", prosseguiu ele. "Entre os nossos julgamentos, 99% são casos de divórcio em que as mulheres buscam alívio. Estamos ajudando as mulheres. Estamos prestando um serviço."
Em Londres, o tribunal do xeque Suhaib Hasan é uma sala no Conselho da Sharia Islâmica de Leyton, bairro operário no extremo leste da cidade. Ali não há advogados nem taquigrafista, nenhum computador ou gravador, de modo que Hasan toma notas parciais à mão, por extenso.
Hasan aconselha as mulheres a dissolverem seu casamento também sob o sistema civil britânico. "Sempre tentamos manter os casamentos unidos, em especial quando há filhos", disse a esposa de Hasan, Shakila Qurashi, que atua como conselheira informal das mulheres.
Se o marido bate na mulher, ela deve ir à polícia e se divorciar, explicou Qurashi. "Mas se ele deu um tapa nela só uma vez, ou algo assim, e se ele admite que errou e promete não fazer de novo, aí dizemos [à mulher]: ‘Você tem de perdoar’."


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