São Paulo, segunda-feira, 04 de janeiro de 2010

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DIÁRIO DE NONGOMA

Derramando o sangue dos touros

Por BARRY BEARAK
NONGOMA, África do Sul - O touro estava em grande inferioridade numérica, e, embora o corpo musculoso, o espesso couro negro e os chifres duros como pedra lhe oferecessem algumas vantagens, dificilmente o animal poderia ganhar essa briga. Em torno dele, 40 guerreiros zulus se aglomeravam, para matá-lo com as próprias mãos.
Recolhido ao estábulo real, o touro trotou um pouco ao redor, procurando nervosamente um escape. Então hesitou, e os guerreiros -todos em torno dos 20 anos- avançaram, agarrando qualquer coisa que estivesse ao alcance.
A morte do touro é parte do Ukweshwama, cerimônia anual que celebra uma nova safra. É um dia de oração, em que os zulus agradecem seu criador e seus ancestrais. Por tradição, um novo regimento de jovens guerreiros é chamado a enfrentar o touro, para mostrar sua coragem, herdando a força da besta.
Acredita-se que esse poder então se transfira ao rei zulu.
Normalmente, o Ukweshwama é visto por quem é de fora como pouco mais que uma curiosidade. O rei Goodwill Zwelithini é hoje uma figura praticamente cerimonial, e sua monarquia é mais um vínculo emocional do que uma realidade política. Mas, neste ano, um grupo sul-africano de direitos dos animais assumiu a defesa do malfadado touro, criticando seu abate como desnecessariamente cruel.
"Isso é reminiscente da chegada às nossas costas dos colonizadores europeus, que declararam que os nossos povos eram gentios bárbaros que precisavam ser civilizados", escreveu Zizi Kodwa, porta-voz do presidente Jacob Zuma, ele próprio um zulu e defensor apaixonado das tradições zulus.
Os líderes da Animal Rights Africa nunca haviam ido ao Ukweshwama, mas garantiram ter recolhido relatos anônimos de quem foi. A descrição citada nos informativos do grupo é um retrato medonho.
"Por 40 minutos, dúzias [de pessoas] pisotearam o touro, que berrava e gemia, arrastaram sua cabeça pelos chifres para tentar quebrar seu pescoço, puxaram sua língua para fora, enfiaram areia na sua boca e até tentaram amarrar seu pênis num nó."
Muitos ficaram horrorizados. Perguntaram-se se não seria o caso de rever as tradições para adequá-las a uma visão moderna do mundo. De outro modo, a cultura pode ser usada como pretexto para ultrajes como a circuncisão forçada de mulheres e o assassinato de supostas bruxas.
Ndele Ntshangase, conferencista da Universidade de KwaZulu-Natal, disse que a técnica usada na morte do touro consistiu em agarrar com jeito as patas e chifres e derrubá-lo. O animal foi liquidado com uma hábil torção do pescoço. "Não há dúvida de [que não houve] tortura."
A Animal Rights Africa persistiu e levou o caso aos tribunais. O juiz Nic van der Reyden disse que a decisão era difícil, mas que matar o touro era uma importante tradição zulu, e os zulus são o maior grupo étnico do país, somando mais de 10 milhões de indivíduos. Interferir na cerimônia seria como pedir aos católicos que parassem de comungar, disse ele.
"Se eu decido que o touro não deve ser morto, significa que o poder não será transferido ao rei", argumentou ele, segundo relatos da imprensa. "Digamos que o rei seja atingido por um raio depois da sentença. Vão dizer que foi porque interrompi o ritual deles."


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