São Paulo, segunda-feira, 04 de janeiro de 2010

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Criaturas que vivem com veneno

Por SEAN B. CARROLL
Visualize uma estranha refeição. Que tal polvo de anéis azuis, caranguejo camuflado, caramujo marinho e baiacu?
Claro, alguns povos os consideram finas iguarias, e o baiacu certamente é tratado como tal em algumas partes da Ásia. Mas esses pratos têm em comum algo importante: são mortais. Todos esses animais estão abarrotados de uma poderosa neurotoxina chamada tetrodotoxina.
Isolada inicialmente no baiacu, a tetrodotoxina está entre as mais potentes toxinas conhecidas. Uma porção de apenas 15 ml do fígado do peixe, conhecido no Japão como "fugu kimo" e consumido por ousados connoisseurs, já pode ser letal. Quando ingerida, a toxina paralisa nervos e músculos, o que leva a uma parada respiratória e, em alguns casos por ano, à morte.
A tetrodotoxina está presente não só em animais marinhos. Há elevadas concentrações também na pele de certas salamandras da América do Norte e do Japão, e em várias espécies de sapos da América do Sul e Central e de Bangladesh. A ocorrência disseminada da tetrodotoxina constitui alguns enigmas. Primeiro, como animais tão diferentes, pertencentes a ramos separados do reino animal, chegaram a possuir o mesmo veneno letal? E como eles conseguem tolerar altos níveis de tetrodotoxina, e outros não?
Uma explicação é que esses animais teriam encontrado separadamente uma forma de sintetizar a tetrodotoxina. Mas a toxina é uma molécula bastante complexa, que exige várias etapas químicas para ser montada. Parece muito improvável que a molécula fosse inventada tantas vezes em diferentes animais. As evidências, aliás, são de que os animais não produzem a toxina.
Quando baiacus são criados em aquários livres de bactérias, eles são atóxicos. E, quando as salamandras japonesas e os sapos panamenhos são criados com dietas especiais, eles perdem sua toxidade. Essas experiências indicam que os animais portadores de tetrodotoxina obtêm a toxina da cadeia alimentar.
Embora esclareçam o mistério sobre a origem da tetrodotoxina, as experiências não explicam como tantos tipos de animal a exploram. A tetrodotoxina ataca uma característica antiga do reino animal, bloqueando canais que normalmente controlam o movimento dos íons de sódio através das membranas nevrálgicas e musculares, e paralisando assim a atividade elétrica. Todos os animais têm esses canais de íon sódio, e a parte do canal onde a tetrodotoxina se encaixa e paralisa é em geral muito parecida entre eles.
Isso nos leva a uma pergunta simples: por que os baiacus não morrem?
Uma pista é que nem todas as cerca de 120 espécies de baiacus são tóxicas ou resistentes à tetrodotoxina. As espécies tóxicas toleram concentrações 500 a 1.000 vezes maiores de tetrodotoxina em comparação a baiacus atóxicos e outros peixes.
Essa diferença fica clara no exame detalhado dos canais de sódio deles. Os baiacus têm oito versões desses canais, codificadas por oito genes diferentes. Manda Clair Jost e seus colegas da Universidade do Texas, Austin, e da Universidade de Chicago descobriram que no baiacu tóxico a maioria dos canais evoluiu de modo a ser resistente à tetrodotoxina, e diferentes grupos de baiacus parecem ter adquirido a resistência independentemente.
Então o encadeamento mais plausível dos fatos para a evolução da elevada resistência à toxina é que inicialmente ocorrem mutações que fornecem alguma proteção, e que a continuada presença da tetrodotoxina no meio ambiente seleciona os animais que portam as mutações adicionais, até que, com o tempo, muitos ou todos os canais ficam altamente resistentes. Nesse sentido, o que não mata os animais em evolução os torna mais fortes -e letais.


Sean B. Carroll é autor de "Remarkable Creatures: Epic Adventures in the Search for the Origin of Species'' ("Criaturas notáveis: aventuras épicas em busca da origem das espécies")



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