São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Revelando a magia do pianista

Por ANTHONY TOMMASINI
O fenomenalmente talentoso e pouco convencional pianista Glenn Gould foi um emaranhado de tiques e complexos pessoais. Às vezes, ele aparentava ser um provocador que só queria irritar o público com interpretações radicais e comportamentos esdrúxulos. Em outros momentos, transmitia a impressão de ser um homem frágil e temeroso, que só ficava à vontade quando fazia música.
"Genius Within: The Inner Life of Glenn Gould", o novo e fascinante documentário dos cineastas canadenses Peter Raymond e Michèle Hozer, vem sendo elogiado pelos insights que oferece sobre a personalidade excêntrica de Gould. O filme mostra a progressão triste de um músico brilhante e falastrão, dotado de visão artística fortemente original, que vai ficando mais e mais obsessivo e isolado. Mas também oferece insights valiosos sobre o funcionamento interno da técnica particular de Gould e de sua abordagem interpretativa nada ortodoxa.
Filho único, Glenn Gould estudou piano com sua mãe até os 11 anos de idade, quando começou a ter aulas com o pianista chileno Alberto Guerrero no Conservatório de Toronto. Guerrero propunha uma disciplina técnica conhecida como "tapping". Ele ensinava seus alunos a manter uma mão em posição relaxada sobre o teclado, encostando levemente nas teclas. Com a outra mão, o aluno pressionaria a ponta de um dedo o suficiente para abaixar a tecla desejada. A ação mecânica de retorno da tecla à posição original faria o dedo voltar ao lugar. A ideia era ensinar os dedos a tocar com um mínimo de esforço e sem elevação excessiva.
Gould sentava-se muito baixo quando tocava; sua cadeira preferida para tocar tinha apenas 33 centímetros de altura. Nessa posição quase agachada, com as mãos levantadas para chegar ao teclado, seus dedos faziam tudo.
Mas não é possível tocar piano apenas com os dedos. Os braços, os ombros, as costas e até mesmo os pés precisam participar.
O fato de que a música espantosa feita por Gould era destituída dessa dimensão corporal é mostrado no filme, em um segmento sobre sua apresentação do Concerto em Ré menor de Brahms com Leonard Bernstein e a Filarmônica de Nova York, em 1962.
Os tempos musicais nesta performance são muito amplos. Olhando em retrospectiva, porém, Bernstein deve ter ficado incomodado com outras "modificações" de Gould, mais que com os tempos lentos. Brahms frequentemente compunha para o piano como se o instrumento fosse uma orquestra. Aqui Glenn Gould tentou livrar a parte do piano de sua espessura orquestral e purgar a música de contrastes expressivos fortes.
O filme cita Gould em entrevista dada a uma rádio no ano seguinte, dizendo que achou o discurso de Leonard Bernstein naquela noite repleta de espírito positivo e que achara a polêmica divertida.
O fato de que Gould, que morreu em 1982, foi amado por um círculo de pessoas que compartilhavam de sua intimidade é mostrado de maneira comovente no filme. Depois de ter deixado de fazer concertos públicos, aos 31 anos, e limitado seu trabalho aos estúdios de gravação, ele passou horas incontáveis com Lorne Tulk, um engenheiro de áudio que colocava em prática suas exigências difíceis de edição, às vezes deixando de dar atenção a seus filhos por essa razão, ele afirma.
Um dia Glenn Gould disse a Tulk que eles deveriam ser irmãos -que deveriam ir a alguma repartição pública em Toronto e legalizar sua relação. Tulk, conforme recordou no filme, respondeu com gentileza: "Eu adoraria ser seu irmão, Glenn, mas tenho quatro irmãos e uma irmã" que poderiam querer opinar sobre o assunto.
Gould achou a resposta muito doce, diz Tulk. O assunto nunca mais foi mencionado.


Texto Anterior: Arte & Estilo
Resenha - Edward Rothstein: Olhando para o sul no passado de Nova York

Próximo Texto: Ensaio - Joe Nocera: "Wall Street", o retorno: a crise seguinte da cobiça
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.