São Paulo, segunda-feira, 07 de setembro de 2009

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INTELIGÊNCIA

ROGER COHEN

Sob uma árvore, ecos vindos de longe

CHÉRENCE, França
Esse vilarejo rural parece muito distante de Paris, mas a capital francesa fica a menos de uma hora de distância. O silêncio é tanto que o som de cascos de cavalo é audível desde o outro lado da cidade. O outro som vem da igreja em estilo romanesco, onde um sino de bronze do século 16 marca as horas.
Assim como em qualquer outra comunidade pequena, porém, há mais coisas acontecendo do que são aparentes à primeira vista. Graças a um contrato pelo qual a igreja foi restaurada e convertida para usos tecnológicos, sua torre hoje oculta uma antena instalada pela France Telecom, garantindo ótima recepção de telefonia celular e internet. Isso permitiu intercâmbios globais sob a superfície plácida da vida do povoado.
Uma pequena cerimônia foi realizada outro dia no quintal da casa de meus amigos Daniel e Claire. Ela aconteceu sob uma ameixeira. Essa variedade específica de ameixa é conhecida na França como "les prunes de Monsieur" -"ameixas do senhor"- , possivelmente porque o tamanho das frutas se assemelha a uma parte importante da anatomia masculina.
A árvore, que se ergue diante do ateliê onde Claire pinta, hoje abriga o que equivale a um pequeno altar. Em 1975, Claire estudou o trabalho com fantoches em Taiwan com um dos grandes artistas do ramo, Li Tien-lu. Eles ficaram amigos, e Li a visitou com frequência nos anos posteriores.
Sua ligação com Chérence era tão grande que, antes de morrer, em 1998, Li pediu que parte de seu corpo encontrasse no povoado seu lugar de descanso final. Um pedaço de osso dele -acredita-se que um fragmento do dedo- foi sepultado, em uma cerimônia em 1999, sob a ameixeira.
Neste ano, o filho de Li morreu. Naturalmente, queria estar perto de seu pai. Então, os arranjos foram feitos por meio de rede de internet que passa pela igreja. Foram queimados origamis de flores de lótus, imitações de cédulas de dólar e sapatos de papel, e foram servidos pato assado e outros quitutes, enquanto pai e filho -ou, melhor, fragmentos de cada um- foram unidos sob a ameixeira.
É muito pacífico ali. Um pedacinho de terra queimada marca o lugar onde foram feitas as oferendas. Todas as ameixas foram comidas.
Eu mesmo tenho uma ameixeira, mas de variedade diferente. Neste ano, as "mirabelles" -ameixa pequena, amarela e de sabor doce- foram abundantes, tão abundantes que eu não sabia o que fazer com elas. Até que, lendo Salman Rushdie, topei por acaso com descrições de chutneys (geleias agridoces picantes) tão suculentos que não pude resistir à tentação de fazer um.
Meus filhos puseram mãos à obra, descaroçando as ameixas. Em um caldeirão grande foram colocados alguns quilos de ameixas, algumas maçãs cultivadas em casa, cebolas vermelhas, açúcar mascavo, vinagre, alho, vinho branco, pimentas brasileiras, cominho, licor de pêssego e um pouco de sumo de limão. Eu procurava o equilíbrio entre o doce e o picante e deixei minha imaginação me guiar.
Quando o chutney estava pronto e aprovado, levei um vidro dele à casa de Claire. Encontramo-nos debaixo da ameixeira. Ou, melhor, Índia e China se encontraram, e a França também, enquanto tocavam os sinos da torre de tecnologia erguida no século 12. Casando Oriente e Ocidente, passado e futuro, vida e morte, a aldeia global continua a viver.


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