São Paulo, segunda-feira, 07 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INTELIGÊNCIA

MARCELO TAS

Brasil, a nação do improviso

Existe uma palavra-chave para entender o milagre, se é que ele existe, do Brasil estar entrando no ultracompetitivo clube que movimenta a economia global: "gambiarra".
Aqui, o termo ainda tem um certo sentido pejorativo, mas se tornou tão cotidiano e popular na cultura brasileira como o futebol. "Fazer uma gambiarra" significa resolver de forma improvisada, quando não ilícita, uma questão tecnológica.
Uma das primeiras e mais famosas gambiarras brasileiras -espalhadas como um vírus pela nação- foi a técnica de pendurar um produto de limpeza, a palha de aço, na ponta das antenas dos antigos aparelhos de TV para melhorar a recepção da imagem.
É importante apontar a característica que diferencia a gambiarra brasileira de outras manifestações "gambiárricas" pelo mundo, como o Maker Movement nos EUA ou a tendência "faça-você-mesmo". A gambiarra brasileira é filha única da necessidade com a absoluta falta de recursos.
No dicionário Houaiss, gambiarra significa extensão elétrica com uma lâmpada na extremidade utilizada para trabalhar em ambientes escuros. No mesmo verbete, registra-se ainda o significado informal da palavra: extenção puxada fraudulentamente para furtar energia elética, também conhecida como "gato". Com a revolução digital, a travessura ampliou-se para outros modelos de negócio, como a distribuição ilegal de TV a cabo e internet banda larga nas periferias das grandes cidades.
Longe de elogiar a ilegalidade, penso que é hora de o Brasil e seus parceiros comerciais acordarem para o talento do brasileiro para o improviso alavancado pela vontade de ser alguém na vida.
Garrincha, o mais popular jogador de futebol brasileiro depois de Pelé, é um exemplo clássico dessa virtude. O "Anjo de Pernas Tortas", como ficou conhecido, nasceu de pai alcoólatra e com várias disfunções físicas. Tinha a perna direita curvada para dentro e a perna esquerda, seis centímetros mais curta, curvada para fora.
Soube usar com destreza esse swing involuntário, causado pelo deslocamento inusitado do seu centro de gravidade, para se tornar o maior driblador da história do futebol mundial. Como ponta-direita titular da seleção, foi a grande estrela da conquista de duas Copas do Mundo pelo Brasil: 1958 na Suécia e 1962 no Chile.
Quando o assunto é tecnologia, outros "garrinchas" despontam pelo território nacional. Falo de figuras como José Júnior Luísa, habitante da zona rural de Taperoá, cidadezinha da Paraíba. Diante da necessidade de transportar leite de sua pequena fazenda para a cidade e da absoluta ausência de financiamento para a compra de um automóvel, Junior criou com suas próprias mãos uma espécie de Smart car brasileiro improvisado.
Com o motor de uma motocicleta 125 cc caindo aos pedaços, encarou a tarefa de ser o projetista, construtor e único piloto de testes do novo bólido. Sobre um chassi tubular configurou um sistema de tração traseira utilizando uma corrente. Com doações de amigos e algum garimpo pelos ferro-velhos locais, improvisou bancos, painel de controle, câmbio, pedais e até um espelhinho retrovisor. Equipou o possante com quatro rodas de moto, mas teve o cuidado de inserir calotas de automóvel para dar um ar, digamos, de segurança e respeito.
Claro que não acredito que o Smart car do Júnior vá competir com o da Swatch Mercedes. Mas talvez sua existência seja um bom motivo para o Brasil rever sua eterna vocação de exportador de matéria-prima.
Temos, como se sabe, o melhor futebol do mundo. Só que em vez de exportar o futebol -os direitos de transmissão pela TV, por exemplo, como fazem os europeus- exportamos a matéria-prima: os jogadores.
Até o nome do nosso país veio da primeira matéria-prima aqui encontrada, arrancada e exportada a preço de banana: a madeira pau-brasil. Quem sabe não é hora de investir no talento para o improviso e exportar gambiarras legalizadas e de alta qualidade: ou seja, de o Brasil exportar inovação?


O jornalista Marcelo Tas apresenta ao vivo o "CQC", programa semanal satírico. Envie comentários para intelligence@nytimes.com


Texto Anterior: TENDÊNCIAS MUNDIAIS
Novas regras e novas taxas para cartões de crédito

Próximo Texto: Afegãos descrevem a vida na "prisão negra" dos EUA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.