São Paulo, segunda-feira, 08 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Alheia à guerra, aldeia iraquiana vive no passado

Por ANTHONY SHADID
HALAICHIYA, Iraque - A frase possui uma poesia que falta à terra. "Atrás do sol", dizem os habitantes locais em árabe, e isso significa que esse lugar miserável e isolado na nascente do canal que une o Tigre ao Eufrates é mais remoto que qualquer outra cidade do Iraque.
"O fim do mundo" foi como o local foi descrito pelo capitão Abdullah Naeem, do Exército iraquiano, quando sua picape passou por bandeiras diversas assinalando devoção religiosa, barracos de tons do marrom típico da pobreza e terra devastada pelo sal deixado pelo recuo das águas. "Isto aqui é o interior do interior."
Halaichiya é distante em sua localização e sua perspectiva. Em um país invadido, ocupado, devastado e ainda não reconstruído, o vilarejo possui a distinção de nunca ter visto um americano, muito menos um soldado. Nenhum dos 110 mil soldados americanos ou das centenas de diplomatas no Iraque esteve ali. Eles não têm razão para isso.
Basra, ao sul, fica longe, e Bagdá, mais longe ainda. Apenas a fronteira iraniana, a 16 km ao leste, atrai interesse. Halaichiya ocupa uma posição incomum, assistindo aos acontecimentos se desenrolarem no país que a cerca quase como se fosse um cinema.
"A vida é como você a vê", ponderou Obeid Jabbar Hlayil, xeque do povoado de 200 pessoas. "É assim que éramos e é assim que somos, dos caniços à lama do rio."
É raro encontrar um lugar não tocado pela guerra no Iraque, onde a carnificina chegou a ser tão estarrecedora quanto atordoante. "Os eventos", é como as pessoas frequentemente se referem às profundezas dela -um anonimato que deixa subentendidas tantas histórias que nunca serão contadas. Em Halaichiya, à qual se chega de barco, ainda reina um clima de normalidade e inocência.
Ao longo das margens do rio, cozidas pelo sol, os aldeões colhem tamariscos, cuja madeira perfumada, que queima devagar, é a preferência local para assar um peixe conhecido como "masgouf". Mergulhados até as coxas, pescadores lançam suas redes em águas ainda navegadas por uma embarcação tradicional, a "chakhtoura".
"O que mudou aqui foi apenas a chegada dos celulares", comentou Karim Mohaysin Hassan.
Na realidade, porém, percebem-se outros sinais de modernidade. Karim Hassan -que, indagado sobre sua idade, respondeu "sou velho!"- carrega seu telefone em um gerador que os habitantes de Halaichiya ligam por algumas horas todas as noites. Embalagens de antibióticos fabricados na Suíça e latas de refrigerante Al Deera Cola se espalham pelo chão, perto dos barracos. Um morador do vilarejo tem uma picape Toyota branca.
"Mas será que não merecemos uma escola?", pergunta Shabeeb Hassan, que, como seus filhos, é analfabeto. Um morador de Bagdá pode achar graça da ideia de o Iraque ser uma terra de fartura. Mas é essa a opinião em Halaichiya. "Só ouvi falar coisas boas sobre o resto do país", disse Ahmed Khalaf.
"Najaf é tão bela", comentou Saddam Mshiji, desfiando os nomes de outras cidades iraquianas. "Basra, também."
"Elas têm ruas asfaltadas?", perguntou seu amigo.
Os americanos são quase um mito, algo limitado à imaginação.
Karim Hassan visualizou os soldados dos EUA como sendo loiros, de faces vermelhas. "São mais altos e mais fortes", acrescentou. "Eles têm sangue bom."
"Dá para me comparar com um americano?", perguntou Hassan, esticando seus braços magros e frágeis. "Se me vissem, na América, me jogariam no lixo e ateariam fogo. Penso neles e morro de inveja", concluiu, rindo.


Texto Anterior: Egito nega evidências de violência sectária
Próximo Texto: Diário De Robben Island: Homens armados defendem sítio histórico de Mandela... dos coelhos

Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.