São Paulo, segunda-feira, 08 de fevereiro de 2010

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ARTE & ESTILO

Ensaio - Dwight Garner

O buraco negro da Coreia do Norte

Os computadores são raros na Coreia do Norte, e para a maioria de seus cidadãos a internet é pouco mais que um comentário sussurrado. Na verdade, é provável que apenas uma pessoa na Coreia do Norte surfe na web sem ser monitorado: Kim Jong-il, o líder supremo do regime autoritário.
Quando ele está on-line, e não concentrado nos sites ligados a suas obsessões (filmes, comidas finas, mulheres, armas nucleares), Kim às vezes deve ver o que seu país parece ao resto do mundo, nas assombrosas fotografias de satélite do Extremo Oriente à noite.
Você provavelmente já as viu. Os países próximos da Coreia do Norte -Japão, Coreia do Sul, China- brilham com luzes condensadas, fervilham de civilização. Mas a Coreia do Norte, que abriga cerca de 23 milhões de pessoas, é um buraco negro, um oceano de escuridão. Barbara Demick, correspondente do jornal "Los Angeles Times", começa seu excelente novo livro, "Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea" (Nada a invejar: vidas comuns na Coreia do Norte), debruçando-se sobre essas imagens de satélite. Fica chocada e comovida. "A Coreia do Norte não é subdesenvolvida", observa. "É um país que caiu do mundo desenvolvido."
"Nothing to Envy" é 1 dos 3 novos livros provocativos sobre o país. Os outros são "The Hidden People of North Korea" (A população oculta da Coreia do Norte), de Ralph Hassig e Kongdan Oh, e "The Cleanest Race" (A raça mais limpa), de B. R. Myers.
A Coreia do Norte não é um país fácil de se observar. E se temos dificuldades para ver com clareza os norte-coreanos, eles simplesmente não podem ver o Ocidente. O uso do telefone é restrito. O serviço postal é inconfiável. Praticamente não existe correio eletrônico. Televisores e rádios só recebem os canais aprovados. Os cidadãos são alimentados à força com uma dieta constante e anestesiante de propaganda estatal, dedicada a manter o culto da personalidade de Kim Jong-il e a atacar tudo o que é americano.
O livro de Demick acompanha a vida de seis norte-coreanos comuns, incluindo uma médica, dois namorados em conflito, um operário de fábrica e um órfão.
As pessoas que Demick observa viveram, antes de desertar, no nordeste da Coreia do Norte, longe da arrumada capital do país, Pyongyang. As vidas que ela descreve parecem brutais: muitas vezes não há comida suficiente; os cidadãos trabalham longos turnos que podem ser seguidos de horas de treinamento ideológico à noite; um comentário antipatriótico, especialmente uma piada sobre Kim, pode mandar uma pessoa para o gulag pelo resto da vida, isso se ela não for executada.
Já o livro de Hassig e Oh se baseia em mais de 200 entrevistas com desertores e pinta uma imagem de uma população inquieta, cada vez mais desconfiada da propaganda oficial. "Seria um grande exagero dizer que a população apoia Kim Jong-il", eles escrevem. "[Mas] ela não pensa em se opor a ele." Os norte-coreanos estão ocupados demais tentando sobreviver para pensar em outras coisas.
O retrato de Hassig e Oh do estilo de vida indulgente de Kim é minucioso e devastador. Ele pode parecer um homem do povo, eles escrevem, com suas calças marrons, jaquetas de zíper e corpo mirrado. Mas eles relatam sua obsessão por equipamentos eletrônicos, as "equipes de prazer" de garotas que mantém à mão, os vinhos de Bordeaux que importa. Enquanto muitos de seus governados passam fome, eles escrevem, Kim "é um tal connoisseur que, segundo seu ex-cozinheiro, cada grão de arroz destinado a sua mesa é inspecionado".
Myers, autor de "The Cleanest Race", que aborda como os norte-coreanos veem a si próprios, é editor-colaborador da revista "The Atlantic" e dirige o Departamento de Estudos Internacionais da Universidade Dongseo, na Coreia do Sul.
Seu novo livro, muitas vezes difícil, tenta fazer um perfil psicológico de Kim Jong-il e seu regime. Ele explica que a visão de mundo predominante na Coreia do Norte é "muito distante" do comunismo, do confucionismo e das ideologias "de vitrine" oficiais que os ocidentais analisam. Em vez disso, ele afirma, essa visão de mundo "pode ser resumida a uma única certeza: a população coreana é puro-sangue, e portanto virtuosa demais para sobreviver neste mundo maligno sem um grande líder paternal". Sua Coreia do Norte é guiada por um "nacionalismo paranoico, baseado na raça".
Kim Jong-il teria sofrido um infarto em 2008 e parecia frágil em suas recentes aparições, cada vez mais raras. Enquanto o mundo especula sobre seu sucessor, que quase certamente será um de seus filhos, uma das lições desses livros é para não afastarmos nossos olhares da vida limitada do norte-coreano médio. "O regime de Kim essencialmente mantém sua população refém", escrevem Hassig e Oh, e eles se decepcionam ao notar que "os EUA estão muito mais interessados nas armas de destruição em massa [do país] do que no destino de seus reféns".


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