São Paulo, segunda-feira, 08 de junho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para proteger cidade antiga, China deve demoli-la

Por MICHAEL WINES

KASHGAR, China — Mil anos atrás, os ramais norte e sul da Rota da Seda convergiam sobre a cidade de Kashgar, perto da extremidade ocidental do deserto de Taklamakan. Mercadores de Nova Déli e Samarkanda, exaustos depois de percorrer os caminhos gelados pelas cordilheiras de montanhas mais inóspitas do mundo, descarregavam ali seus cavalos e vendiam açafrão e alaúdes nas ruelas estreitas da cidade. Mercadores chineses, com seus camelos carregados de seda e porcelana, faziam o mesmo.
Aos mercadores hoje se somam turistas que exploram as vielas que, no passado, foram saqueadas por Tamerlão e Genghis Khan.
Agora Kashgar está prestes a ser saqueada novamente.
Novecentas famílias já foram retiradas da Cidade Velha de Kashgar, “o exemplo mais bem conservado de uma cidade islâmica tradicional a ser encontrado em qualquer parte da Ásia central”, como escreveu o arquiteto e historiador George Michell no livro de 2008 “Kashgar: Oasis City on China’s Old Silk Road” (Kashgar: cidade de oásis na antiga Rota da Seda chinesa).
Autoridades da cidade devem demolir nos próximos anos pelo menos 85% desse labirinto de casas e lojas pitorescas, embora decadentes. Muitas de suas 13 mil famílias, muçulmanas de um grupo étnico turcomano conhecido como uigures, serão transferidas.
Em seu lugar será erguida uma nova Cidade Velha, misto de apartamentos de altura média, praças, vielas alargadas para virar avenidas e reproduções da arquitetura islâmica da antiguidade, “para preservar a cultura uigur”, disse o vice-prefeito de Kashgar, Xu Jianrong.
A demolição é vista como urgente porque um terremoto pode atingir a cidade a qualquer momento, derrubando construções seculares e provocando milhares de mortes. “Toda Kashgar é uma área especial que corre o risco de terremotos”, disse Xu. “Pergunto: que governo nacional deixaria de proteger seus cidadãos dos perigos de um desastre natural?”
Os críticos se preocupam com um desastre de outro tipo. “Desde um ponto de vista cultural e histórico, esse plano é estúpido”, disse Wu Lili, diretor administrativo do Centro Pequim de Proteção Cultural, organização não governamental. “Desde o ponto de vista dos moradores locais, é cruel.”
Projetos de reconstrução urbana empreendidos durante o boom chinês já derrubaram centros antigos de muitas cidades.
Mas Kashgar não é uma cidade chinesa típica. As autoridades de segurança chinesa a veem como criadouro de um movimento pequeno mas resistente de separatistas uigures que, segundo Pequim, têm vínculos com jihadistas internacionais. Assim, a reurbanização desse centro de cultura islâmica da Antiguidade vem acompanhada de um toque de conformidade forçada.
A China defende um plano internacional para designar pontos importantes da Rota da Seda como sítios de patrimônio histórico mundial da ONU —um fator poderoso de atração de turistas. Mas Kashgar não figura entre a lista de sítios propostos pela China.
Apesar de a cidade estar oferecendo aos moradores deslocados a oportunidade de construir casas novas nos locais de suas casas antigas, alguns residentes reclamam de que a indenização proposta não cobrirá o custo da reconstrução.
“Minha família construiu esta casa há 500 anos”, queixou-se um homem de 56 anos, dizendo chamar-se Hajji, enquanto sua mulher servia o chá dentro do sobrado deles na Cidade Velha.
Hajji e sua mulher perderam suas economias cuidando de um filho doente, e o dinheiro que receberão da prefeitura em troca da demolição de sua casa não será suficiente para reconstruí-la. A opção é mudar-se para um apartamento distante, o que os forçará a fechar a loja que é sua única fonte de renda.
“A casa pertence a nós”, disse a mulher de Hajji, que se negou a revelar seu nome. “Muitas gerações sucessivas podem viver neste tipo de casa. Mas, se nos mudarmos para um apartamento, ele será demolido a cada 50 ou 70 anos. Esse é o maior problema de nossas vidas. Como nossos filhos poderão herdar um apartamento?”


Texto Anterior: Retórica presidencial mira inimigos, sejam reais ou imaginários
Próximo Texto: Caça oficial a feiticeiros provoca medo em Gâmbia
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.