São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2008

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Era Putin silencia os pecados stalinistas

Por CLIFFORD J. LEVY

TOMSK, Rússia - Sob o comando de Vladimir Putin, o Kremlin tenta não só ditar o futuro da Rússia, mas também o seu passado, alimentando um nacionalismo que glorifica os triunfos soviéticos e minimiza os horrores daquele sistema.
Que o diga o historiador Boris Trenin, que há anos tenta sem êxito obter acesso a documentos que poderiam comprovar a existência de uma vala comum nesta cidade da Sibéria. Na opinião dele, as restrições refletem o fato de que a Rússia nunca conseguiu entender e expor os pecados do comunismo e nunca iniciou um processo de reconciliação e verdade, como na África do Sul e em outros países após a queda de determinados regimes.
Em todo o país, de fato, muitos arquivos relativos a homicídios, perseguições e outros abusos cometidos por autoridades soviéticas estão cada vez mais restritos. Há especial sigilo em torno de atos dos serviços de segurança, talvez porque o próprio Putin seja um ex-agente da KGB.
“Eles dizem que a Rússia não está mais ajoelhada e que deveríamos nos orgulhar do nosso passado”, disse Trenin. “O tema das repressões stalinistas é duro, sombrio e nada heróico. Então dizem que por essa razão deve ser deixado gradualmente de lado. Dizem que, quanto menos soubermos, melhor viveremos.”
Essas declarações foram repetidas em entrevistas com mais de uma dúzia de historiadores da Rússia, unânimes em dizer que na década de 1990 havia mais acesso aos arquivos da KGB e de outros serviços de segurança. Desde que Putin assumiu o governo, a postura mudou, e os arquivos ficaram mais fechados. Putin teve dois mandatos como presidente, até maio, quando se tornou primeiro-ministro do país. O diretor dos arquivos do FSB (agência que sucedeu à KGB) em Moscou, Vasili Khristoforov, diz que todos os registros relativos a “formas e métodos de atividade operacional investigativa” jamais serão liberados.
O sigilo sobre os arquivos soviéticos de segurança inviabiliza não só as investigações sobre os fatos da década de 1930, durante o regime de Stálin, quando milhões de pessoas foram executadas ou morreram em campos de prisioneiros. Ele impede também uma melhor compreensão de outros aspectos da perseguição soviética, como a captura e deportação de dissidentes até a década de 1980.
E isso gera tensões entre a Rússia e seus vizinhos. O Kremlin rejeita pedidos da Polônia para liberar documentos relativos ao massacre de 22 mil poloneses, a maioria oficiais militares, na floresta de Katin e em outros lugares da Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos durante muito tempo atribuíram o massacre aos nazistas, mas, em 1990, o então dirigente Mikhail Gorbatchov admitiu a culpa das forças de segurança russas.
Em Tomsk, 3.000 km a leste de Moscou, Trenin há muito tempo se interessa por uma área chamada Kashtak, que já foi um terreno baldio com uma grande fossa, ocupado nas últimas décadas pela expansão urbana.
Ainda persistem rumores sobre uma vala comum, e, em 1989, antes do colapso soviético, Trenin e seu colega Vasili Khanevitch, realizaram uma pequena escavação clandestina e encontraram dois crânios com perfurações de bala.
Trenin, 62, e Khanevitch, 52, têm uma ligação pessoal com as dores do regime stalinista. A família de Trenin foi deportada para esta região, e os avós de Khanevitch foram executados pela política secreta. Durante os anos 1990, quando o terreno de Kashtak foi aberto para dar lugar a edifícios, os operários descobriram vários restos humanos enterrados. Às vezes, pessoas topam com ossos ao cuidar dos seus jardins.
No final daquela década, segundo Trenin, alguns agentes aposentados da KGB admitiam que duas vezes por semana, durante os expurgos do final da década de 1930, prisioneiros eram executados e jogados na fossa. Trenin contou que pediu autorização oficial para realizar uma investigação plena e para construir um memorial. O FSB, no entanto, recusou o acesso completo à documentação.
Trenin e Khanevitch participam da ONG de direitos humanos Memorial e mantêm um pequeno museu dedicado às 23 mil pessoas mortas sob mando de Stálin em Tomsk. O museu fica numa antiga prisão usada pela NKVD, a polícia secreta de Stálin, precursora da KGB.
As peças ficam expostas numa fileira de cubículos sombrios onde as pessoas eram torturadas e ficavam amontoadas em grupos de 20. Mas pouco se sabe sobre Kashtak. Trenin acredita que mais de 15 mil pessoas tenham sido executadas no local, mas afirma que, sem acesso aos documentos, não há como ter certeza. Para Khanevitch, essa indiferença é dolorida.
“A Rússia se posiciona como um país completamente diferente, com valores democráticos, mas ao mesmo tempo não rejeita, não se dissocia de e não condena o regime que a antecedeu”, afirmou. “Pelo contrário: defende-o.”

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