São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2008

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Fervor revolucionário estimula conflitos na Nicarágua

Por MARC LACEY

MANÁGUA, Nicarágua - A música do partido sandinista do presidente Daniel Ortega —as canções revolucionárias cantadas em comícios políticos e manifestações de rua— é a mesma que era ouvida durante os anos de guerra na década de 1980. “Irmão, me dê sua mão, agora marchamos unidos em direção ao sol vitorioso, no caminho da liberdade”, diz a letra de uma das canções.
Mas Carlos Mejía Godoy, o cantor e compositor revolucionário que as compôs, pediu ao governo de Ortega que deixe de usar sua música e, recentemente, tem estado ocupado redigindo novas letras que lamentam a direção para a qual Ortega está conduzindo o país.
Mejía Godoy hoje é criticado por membros do partido. Mas os muitos ex-sandinistas que deixam a agremiação, insatisfeitos com seus rumos, são alguns dos críticos mais intransigentes de Ortega hoje em dia.
Eles acusam o presidente de ter manipulado fraudulentamente as eleições municipais de novembro, desconfiança que gerou uma série de manifestações violentas nas ruas do país. A investida contra Ortega vem sendo encabeçada por alguns de seus ex-companheiros na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que governou a Nicarágua nos anos 1980 e voltou ao poder dois anos atrás.
“Quero uma Nicarágua de paz e harmonia”, diz uma canção nova de Mejía Godoy. “Quero uma Nicarágua livre, onde ninguém venha destruir a flor de minha felicidade.”
Os sandinistas de hoje rejeitam as críticas feitas por seus antigos companheiros de armas. “A revolução é como um trem. Algumas pessoas sobem nele, outras descem”, disse o legislador sandinista e ex-guerrilheiro Elías Chévez.
Orlando Nuñez, assessor do presidente, reconheceu que as disputas internas são intensas.
Falando de Ortega, o ex-sandinista Edmundo Jarquín comentou: “Ele nos vê como traidores”. Jarquín candidatou-se à Presidência em 2006, concorrendo com Ortega, em nome do Movimento de Renovação Sandinista, partido político formado quase inteiramente por ex-sandinistas.
Nuñez disse que os sandinistas se mantêm fiéis a seus princípios e continuam focados nas massas pobres, num país cuja economia está em situação apenas ligeiramente melhor que a do Haiti. “Continuamos a focar os temas da revolução dos anos 1980”, disse ele, numa afirmação contestada pelos detratores de Ortega.
O governo de Ortega impediu o partido de Jarquín de participar das eleições municipais, no início de novembro. A iniciativa levou Dora Maria Téllez, que combateu ao lado de Ortega e chegou a ser sua ministra da Saúde no passado, a protestar com uma greve de fome de 12 dias.
Em 1978 Téllez ajudou a liderar a invasão sandinista do Palácio Nacional da Nicarágua, na qual os guerrilheiros fizeram o Congresso inteiro de refém. Ela comandou as negociações com o regime do ditador Anastasio Somoza, que entregou aos rebeldes um resgate de US$ 1 milhão e vários presos políticos sandinistas.
O cisma entre sandinistas e anti-sandinistas vem definindo em grande medida a política nicaragüense há 30 anos. Ortega mudou essa situação ao fechar acordos com adversários ideológicos, visando fortalecer seu futuro político. Mas, com ex-sandinistas agora tendo uma atuação mais forte, os nicaragüenses se vêem divididos em dois campos: orteguistas, que apóiam o presidente, e anti-orteguistas.
Uma integrante do segundo grupo é Sophia Montenegro, cujo escritório foi invadido recentemente pelo governo de Ortega. O governo acusou a organização para a qual ela trabalha, o Movimento Autônomo de Mulheres, de fazer lavagem de dinheiro com doações recebidas. A organização vem fazendo críticas abertas à atuação de Daniel Ortega com relação às mulheres.
A questão da autonomia e do poder das mulheres foi uma das pedras fundamentais da revolução sandinista, mas, de acordo com Montenegro, esse ideal se perdeu. Uma coisa que a enfureceu especialmente foi o apoio dado pelos sandinistas a uma proibição do aborto em qualquer circunstância, mesmo quando a vida da mãe corre risco. A decisão tomada em 2006 foi parte do esforço de Ortega de melhorar suas relações com a Igreja Católica.
As acusações de abuso sexual feitas contra Ortega por sua enteada em 1998 são outro ponto mencionado com freqüência pelas mulheres que o criticam. O presidente vem enfrentando a ameaça de protestos irados com relação a esse ponto, onde quer que vá. Na Nicarágua, ele tem imunidade legal e não foi levado a julgamento.
O relacionamento de Ortega com um de seus assessores próximos, Dionísio Marenco, prefeito de Manágua em final de mandato, também deteriorou. Marenco atribui a mudança a sua decisão de opor-se a um candidato a vice-prefeito proposto um ano atrás pela mulher do presidente, Rosario Murillo. Desde então, disse Marenco, Murillo passou a acusá-lo de conspirar contra o presidente.
“A traição é a pior coisa da qual se pode ser acusado”, disse ele, indicando que pode deixar o partido. “Temos que esperar para ver como ficam as coisas. Neste momento a situação é extremamente tensa e complicada.”


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