São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2008

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Por ROBERT F. WORTH

RIYAQ, Líbano - Num gramado do vale do Bekaa, num dourado fim de tarde, centenas de jovens com uniformes e lenços de escoteiros estão em posição de sentido, enquanto uma banda militar desfila envergando a bandeira amarela que identifica o movimento militante xiita Hizbollah.
São adolescentes de 17 ou 18 anos, mas têm os semblantes fechados de adultos. Todos trazem no peito uma pequena foto do aiatolá Ruhollah Khomeini, clérigo xiita que liderou a Revolução Islâmica do Irã.
“Você é nosso líder”, gritam os meninos, enquanto um funcionário do Hizbollah sobe ao palanque. “Somos os seus homens!”
Esta é a vanguarda juvenil do Hizbollah, os Escoteiros Mahdi. Alguns dos formandos reunidos nesta cerimônia irão aderir à guerrilha do Hizbollah, enfrentando Israel no sul do Líbano. Outros irão trabalhar na burocracia do partido. Os demais provavelmente engrossarão a base de apoio —apaixonadamente leal e sempre crescente— que faz do Hizbollah a mais importante força política, militar e social de todo o Líbano.
Vale destacar que, embora os Escoteiros Mahdi pertençam à União Libanesa dos Escoteiros, eles não têm qualquer afiliação direta com a entidade internacional do escotismo, com sede na Suíça.
Num momento de ressurgimento religioso em todo o mundo islâmico, a imensa devoção entre os jovens não é nada surpreendente. Mas, no Líbano, o Hizbollah (“Partido de Deus”) dirigiu esse fervor para um projeto altamente político: o de educar a nova geração para manter a luta militar contra Israel.
Há uma rede de escolas —algumas dirigidas diretamente pelo Hizbollah, outras afiliadas ao grupo ou por ele controladas. Em todo o país, um grupo de clérigos dá aulas semanais de religião aos jovens de cada bairro. Em escolas e faculdades não afiliadas, alguns alunos se encarregam de apresentar o Hizbollah a um público mais amplo.
“É como um sistema completo, do primário à universidade”, disse Talal Atrissi, analista político da Universidade do Líbano, que há décadas estuda o Hizbollah. “A meta é preparar uma geração que tenha uma profunda fé religiosa e que também seja próxima do Hizbollah.”

Um acampamento diferente
À distância, aquele se parece com qualquer outro acampamento de escoteiros do mundo. São duas fileiras de barracas, uma voltada para a outra, às margens do rio Litani, o riacho azul-claro que cruza o sul do Líbano não muito longe da fronteira com Israel. Perto da entrada, há aparelhos de ginástica rústicos; pinheiros ondulam com a brisa, e ao longe se vêem morros marrons e secos.
Até que aparecem, dentro do rio, sustentados por estacas, dois enormes pôsteres com os rostos de Khomeini e do xeque Hassan Nasrallah, líder do Hizbollah. “Desde 1985, conseguimos criar uma boa geração”, disse o chefe escoteiro Muhammad al Akhdar, 25, que mostra as instalações a um visitante. “Tivemos 850 garotos aqui neste verão, dos 9 aos 15 anos de idade.”
Este acampamento se chama Tir fil Sai, um dos locais de treinamento dos Escoteiros Mahdi no sul do Líbano. Muita coisa do que eles fazem se parece com as atividades realizadas por escoteiros do resto do mundo: aprendem a nadar, a fazer fogueiras, a atar nós e a praticar esportes. Akhdar descreveu alguns dos jogos praticados, como aquele em que duas equipes (“Americanos” e “Resistência”) tentam mutuamente empurrar os rivais ao rio.
Os Escoteiros Mahdi também recebem visitas de combatentes do Hizbollah, camuflados e portando fuzis AK-47, que falam sobre a luta contra Israel.
O grupo de escoteiros foi criado em 1985, pouco depois do nascimento do próprio Hizbollah. Oficialmente, é mais um entre os 29 grupos de escotismo no Líbano, vários dos quais ligados a partidos políticos.
Mas, com cerca de 60 mil crianças e líderes, a entidade tem aproximadamente seis vezes o tamanho de qualquer outro grupo de escoteiros do Líbano. Mesmo seus movimentos de marcha são mais militarizados que os dos demais, segundo Mustafa Muhammad Abdel Rasoul, presidente da União Libanesa dos Escoteiros.
Os funcionários do Hizbollah também sempre citam casualmente a ligação entre os escoteiros e a guerrilha. “Após os 16 anos, os meninos em geral vão para a resistência ou para as atividades militares”, disse Bilal Naim, que foi diretor do Hizbollah para os Escoteiros Mahdi até o ano passado.

Tentações laicas
Ali al Saied, 24, é um rapaz calado que cresceu no sul do Líbano e hoje trabalha como contador em Beirute. Passou toda a vida à sombra do Hizbollah. Estudou num colégio da rede Mustafa, afiliada ao partido, onde passava pelo menos cinco horas-aula semanais estudando religião ou ouvindo as orações dos professores pelos combatentes do Hizbollah e pelo aiatolá Khomeini. Depois das aulas e durante o verão, ele ia para os Escoteiros Mahdi.
Al Saied é extremamente devoto —não aperta a mão de mulheres— e cita sua disposição de lutar e morrer pelo Hizbollah como se fosse algo óbvio.
“Eles nos fizeram, então é claro que eu sacrificaria minha vida por eles”, afirmou, com o olhar fixo além das janelas de um bar de Beirute. “Antes, os xiitas estavam em uma condição lastimável”, afirmou.
Por outro lado, a geração de Al Saied também está muito mais exposta que as anteriores às tentações da sociedade laica e às vezes decadente do Líbano contemporâneo.
O café onde ele estava sentado é um exemplo. Cartazes do Hizbollah eram visíveis na rua em frente, mas do lado de dentro jovens tomavam cappuccinos, comiam donuts e ouviam seus iPods em mesas de alumínio.
“O Hizbollah tenta manter a juventude em uma atmosfera religiosa, mas não pode forçá-la”, afirmou, ainda com os olhos voltados para a rua.
Depois que Al Saied havia passado mais de uma hora conversando com um jornalista estrangeiro numa mesa de bar, um jovem de aspecto severo na mesa ao lado começou a encará-lo. De repente, nervoso, Al Saied sugeriu continuar a conversa no andar de cima. Mas, depois, adiou repetidamente um outro encontro, marcado para a semana seguinte. Finalmente, mandou um e-mail desculpando-se por não poder aparecer novamente.
“Como você sabe, vivemos em uma guerra com Israel e os EUA”, explicou ele, num inglês trôpego. “E eles querem nos guerrear [nos destruir] até o fim.”


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