São Paulo, segunda-feira, 10 de agosto de 2009

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Sem-teto poloneses sonham com uma odisseia no mar

Por NICHOLAS KULISH

VARSÓVIA - Duas dúzias de homens sem teto estão construindo um barco para navegar ao redor do mundo. Eles trabalham na Pensão Social São Lázaro, no pátio de uma antiga fábrica de tratores em Varsóvia, na Polônia. Fagulhas voam do casco enferrujado de 17 metros enquanto eles soldam sua forma, mesmo depois de perderem o padre que liderou e inspirou a missão.
Esses homens de traços duros e antigas tatuagens desfocadas decidiram provar sua coragem no mar e mostrar que eles têm valor para a sociedade, mesmo que esta, de modo geral, os tenha esquecido.
"Algumas pessoas provavelmente acham que estamos loucos", disse Slawomir Michalski, 51, que foi um soldador no famoso estaleiro Lenin, em Gdansk, e participou da greve liderada por Lech Walesa em 1980, que ajudou a abalar a base do regime comunista na Polônia e em todo o bloco soviético. Foi um momento singular na história polonesa e algo que dá ressonância às histórias sobre construção de navios no país.
Mas a história do barco tem tons mais profundos porque, apesar de todas as ferramentas modernas usadas na construção e de patrocinadores empresariais que fornecem a matéria-prima, o empreendimento ecoa temas míticos de escapada, aventura e redenção que podem parecer fora de lugar no mundo moderno.
No processo, os 25 poloneses empedernidos que trabalham no projeto lutam pela ideia de construir um barco de sonho, diferente dos enormes iates do magnata da tecnologia Larry Ellison ou do oligarca russo Roman Abramovich, porém mais próximos do ideal de outro marinheiro: Ulisses.
Suas probabilidades de sucesso cresceram um pouco quando o original e aparentemente incansável Boguslaw Paleczny -um padre católico e músico itinerante que se nomeou capataz do projeto- morreu de um ataque cardíaco em junho, aos 50 anos. Os homens dizem que a morte dele fortaleceu sua decisão e que sua história vai terminar com esses membros esquecidos da sociedade polonesa navegando ao redor do mundo.
Haverá espaço para apenas 12 pessoas na viagem, incluindo um capitão profissional. Enquanto alguns sem-teto chamam isso de o sonho de uma vida, outros disseram que preferem trabalhar no barco a navegá-lo pelos mares.
Como membro da Ordem de São Camilo, o padre Paleczny, que usava uma típica batina preta marcada com uma cruz vermelha, conduzia um "sopão" ao ar livre, aos pés do Palácio da Cultura e Ciência de Stalin, no centro de Varsóvia, uma clínica gratuita no final de uma plataforma do metrô na estação principal e o lar São Lázaro (que, segundo os empregados, ele se recusava a chamar de abrigo para sem-teto).
O padre Paleczny também ganhava dinheiro como músico profissional, o que incluiu uma turnê de carro pelos EUA, parando principalmente nas paróquias polonesas. Ele havia até comprado com seu próprio dinheiro os dois prédios de tijolos que se tornaram São Lázaro e os entregou à ordem.
"Depois de criar o lar, o padre Paleczny percebeu que essas pessoas não tinham qualquer objetivo para o futuro, não tinham sonhos", disse Adriana Porowska, 31, que trabalhou no lar como assistente social e o dirige desde a morte do padre Paleczny. "Se você perguntar a eles [os sem-teto] o que estarão fazendo daqui a um ano, eles não têm noção."
A ideia de construir um barco foi do padre Paleczny e surgiu quando ele esteve hospitalizado com tuberculose, três anos atrás.
Depois de conversar com um marinheiro internado ao seu lado, o padre entrou em contato com o autor de um livro sobre construção de barcos, em setembro de 2006, e perguntou se ele doaria os projetos para os sem-teto construírem uma embarcação.
"Quando você entra no edifício da missão, nota que eles têm boas condições [de vida], mas percebe que os homens andam por ali parecendo perdidos", disse Bogdan Malolepszy, 74, o autor que ele contatou. "Então, eu fiz esse projeto, e eles começaram a construí-lo."
Por enquanto, em vez de desbravar as águas azuis do mar Báltico, a proa do barco enfrenta uma lona azul furada em Varsóvia. A tripulação mudou nos quase três anos em que o projeto está em andamento. Alguns homens se afastaram de São Lázaro, e outros encontraram trabalho, incluindo em um estaleiro na Noruega.
Dois meses atrás, dois homens conseguiram empregos em um estaleiro na Polônia, mas parecia que voltariam para o lar quando a crise econômica reduziu as encomendas, disse a assistente social Porowska. "Em breve fará um ano [que eu trabalho]", disse Edmund Polkowski, 52, orgulhoso. "Passei algum tempo preso, e depois é preciso encontrar seu caminho de alguma forma."
O projeto ganhou impulso quando o barco cresceu. "Quanto mais perto do fim da construção, mais ofertas de ajuda recebemos", disse Porowska.
O padre Paleczny tinha planejado vender o nome do navio para um patrocinador. Desde sua morte, porém, os homens do lar têm um plano diferente para homenagear seu amigo e benfeitor.
"Será ainda mais bonito quando estiver no mar, com as velas içadas", disse Michalski. "Será batizado na viagem inaugural e carregará o nome do padre ao redor do mundo."


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