São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2008

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Ativistas negros têm suas preces atendidas

Por KEVIN SACK

ALBANY, Geórgia — Na manhã da última terça-feira, Rutha Mae Harris tirou o carro da garagem, pegou o rumo da sua seção eleitoral, na Mercer Avenue, e começou a cantar suavemente: “Vou votar como o espírito mandar “Vou votar como o espírito mandar “Vou votar como o espírito mandar “E, se o espírito mandar, eu vou votar “Ó, Senhor, eu vou votar, quando o espírito mandar.”
Aos 21 anos, Harris bradava esse mesmo hino de liberdade nas assembléias da Igreja Batista Mount Zion. Era 1961, ano em que Barack Obama nascia no Havaí, a um universo de distância. Voltou a cantá-lo numa passeata até a Prefeitura de Albany, onde ela e outros estudantes negros exigiam exercer o direito ao voto, e nas celas lotadas e imundas da cadeia municipal, que o pastor Martin Luther King Jr. descreveu como as piores que ele já habitara.
Para gente como Harris, que enfrentou prisão, pauladas e ameaças à sua subsistência por querer votar, a ida às urnas na última terça-feira foi o ápice da jornada de toda uma vida. Ao sair das cabines eleitorais, alguns em cadeiras de rodas, outros com bengalas, essa infantaria do movimento pelos direitos civis não escondia sua alegria e seu assombro por ter votado em um negro para presidente dos Estados Unidos. “As coisas melhoraram”, disse Harris, 67, com um sorriso satisfeito. “É hora de colher parte da safra.”
Muitos viram esse momento em termos bíblicos. Se Luther King foi o Moisés do movimento, fadado a morrer sem cruzar o Jordão, caberia a Obama ser o seu Josué, diziam eles.
“King declarou que via a Terra Prometida, que não chegaria lá, mas que alguém chegaria, e esse dia raiou”, disse o reverendo Horace Boyd, 81, que desde aquela época é o pastor da Igreja Batista Shiloh. “E estou feliz que tenha raiado”, acrescentou ele, empurrando sua esposa numa cadeira de rodas até a urna.
Foi um dia que a maioria nunca imaginou que viveria para ver. A partir do ponto de vista de quem estava em meio aos algodoais e bosques de nogueiras-pecãs do Condado Dougherty, onde o movimento pelo voto enfrentou uma de suas maiores resistências, os Estados Unidos simplesmente não pareciam preparados para isso.
Sim, o mundo mudou nestes 47 anos. Na prefeitura, os gabinetes outrora ocupados pelo prefeito segregacionista Asa Kelley Jr. e pelo chefe de polícia Laurie Pritchett agora estão preenchidos por dois negros, o prefeito Willie Adams e o delegado James Younger. Mas muita coisa nesta cidade de maioria negra, com 75 mil habitantes, continua igual: os bairros permanecem fortemente delimitados pela raça, e os negros ainda têm cinco vezes mais chances do que os brancos de viverem na pobreza.
Harris, professora aposentada que esteve presa em três ocasiões, entre 1961 e 62, estava tão convencida de que Obama não conquistaria o voto dos brancos que apoiou Hillary Clinton nas eleições primárias. “Eu simplesmente não sentia que era a hora de um negro, para ser honesta”, disse ela. “Mas o Senhor me revelou que é hora de uma mudança.”
Naquela noite, quando as redes de televisão declararam a vitória de Obama, ela não conseguia conter as lágrimas, numa enxurrada que liberava emoções de uma vida inteira. Dividiu um longo abraço com amigos reunidos no comitê de Obama e, então, puxou o canto exultante de “glória, glória, aleluia”. Após uma oração, se uniu à multidão que gritava: “Conseguimos!”.
Uma das coisas que Harris mais gosta em Obama é que, embora ainda usasse fralda quando ela estava na cadeia, ele parece respeitar o que veio antes. “Ele é de um outro tempo e lugar, mas sabe sobre quais ombros se sustenta”, disse ela.
Quando o movimento pelo direito ao voto chegou a Albany, em 1961, menos de 100 dos 20 mil moradores negros do Condado Dougherty estavam registrados para votar, segundo o pastor Charles Sherrod, um dos primeiros agentes de campo enviados para cá pelo Comitê Estudantil de Coordenação Não-Violenta. A campanha se espalhou rapidamente após a chegada de Sherrod e de outros ativistas, e King dedicou quase um ano à iniciativa.
Mas o movimento tinha um rival à altura, os recalcitrantes dirigentes brancos de Albany, que encheram as prisões de manifestantes, mas sem recorrer à violência que atraía a indignação da imprensa e a intervenção federal em outros campos de batalha dos direitos civis. A energia se esvaiu dos protestos, e King se mudou para Birmingham (Alabama), considerando Albany como um fracasso tático.
Sherrod, 71, que se radicou em Albany e continua dirigindo uma organização social, argumenta que o movimento deu certo —apenas demorou. Ele contou que sentiu o peso dessa história na hora de votar. Pensou nas assembléias, nos hinos de esperança e nos sermões sobre emancipação. “Foi para isso que rezamos, foi para isso que trabalhamos”, disse.
A Igreja Batista Mount Zion atualmente está preservada como marco histórico. Do outro lado da rua, a Igreja Batista Shiloh, fundada em 1888, ainda realiza atividades no santuário onde King pregou para as assembléias.
No culto de domingo, um dos líderes era o pastor-associado Henry Mathis, 53, que já foi membro do governo do condado e é neto de uma expoente do movimento. “Passamos anos cantando que iríamos superar”, pregou ele. “Mas ao nosso Pai, ao nosso Deus, oramos agora para que demonstre que superamos.”


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