São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2008

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ARTE & ESTILO

Imagens que valem mil palavras

Por RANDY KENNEDY

Mesmo antes da morte de Marcel Proust, em 1922, encomendando cerveja gelada do Ritz em seu leito de morte, seu monumental romance sobre arte e memória já era dissecado em busca de sabedoria sobre uma incrível variedade de temas.
Ele foi celebrado por suas obsessões por tudo, de arquitetura normanda a óptica, homossexua-lidade, música clássica, botânica, guerra tática, moda “fin de siècle” e cozinha francesa principesca.
Proust foi até saudado como pioneiro no campo da função cerebral (“Proust Was a Neuroscientist” [Proust foi um neurocientista], de Jonah Lehrer) e estranho autor de auto-ajuda (“Como Proust Pode Mudar sua Vida”, de Alain de Botton).
Por isso é notável que ninguém ainda tivesse se concentrado em um livro sobre a pintura, tema que domina seu romance —“Em Busca do Tempo Perdido”— como quase nenhum outro.
Como indica o pintor Eric Karpeles, Proust cita mais de cem artistas ao longo do romance e menciona ou descreve dezenas de obras reais dos séculos 14 a 20, tornando seu livro “uma das obras mais profundamente visuais da literatura ocidental”.
Karpeles ajudou a traduzir os trechos visualmente oníricos de Proust nas imagens que os inspiraram. Seu guia “Paintings in Proust” [Pinturas em Proust], publicado pela Thames & Hudson, forma uma espécie de museu flutuante das pinturas, desenhos e gravuras que aparecem ou são citados no romance. Mesmo para quem nunca abriu a obra de 3.000 páginas, o livro mostra uma visão rápida e luxuosa do espírito artístico da França na Terceira República, filtrado pela aguda sensibilidade de Proust, formada principalmente no Louvre no final do século 19 e início do 20, com excursões (reais ou imaginárias) a Florença, Veneza, Nova York e Londres.
Enquanto algumas de suas referências à pintura são famosas o suficiente para lembrarmos das imagens —“A Ronda Noturna” de Rembrandt, detalhes do teto da Capela Sistina de Michelangelo, “Angelus” de Millet—, muitas não.
“Isso surgiu do meu desejo de poder ver essas pinturas em um só lugar —e ao procurar para ver se esse livro existia não o encontrei”, disse Karpeles, que só encontrou uma dissertação de doutorado que abordava as pinturas em Proust e um livro publicado em uma pequena editora de Bogotá, no início dos anos 1990, com várias reproduções em preto e branco. “Se você não puder entender a analogia visual que Proust faz, acho que perde muitas idéias do livro”, disse.
A maioria das pinturas entremeadas nas páginas do romance estão lá porque Proust gostava delas e as usou para ampliar descrições e evocar climas. (O narrador, Marcel, um viajante ansioso, compara o céu dramático de Paris aos de obras de Mantegna ou Veronese, “sob o qual só algum ato terrível e solene poderia estar em processo, como a partida de um trem ou a ereção da cruz”.)
Perdendo talvez só para a música, a pintura é o veículo usado no romance de Proust para examinar o misterioso comércio entre percepção, memórias e arte. O personagem Elstir, um impressionista meio zen feito de pedaços de Whistler, Monet, Gustave Moreau, Édouard Vuillard e outros, é importante não somente na trama —Elstir apresenta Marcel a Albertine, a mulher que se tornará seu objeto de amor infiel— mas também em termos de idéias.
O ideal artístico de Elstir, perceber as coisas com mais inocência —ou, como Beckett descreve, representar “o que ele vê, e não o que ele sabe que deveria ver”—, é profundo. Ele vai ao coração de um dos principais temas de Proust: que somos prisioneiros de nossos preconceitos, por hábito e por memória, que fornece apenas um registro pálido e distorcido das experiências que deveria reter.
No fim do romance, o narrador resolve dedicar o resto de sua vida a escrever o romance que se tornará “Em Busca do Tempo Perdido”. Ele está em uma festa cercado de vários personagens do romance, já envelhecidos, e pelas pinturas de seu amado Elstir, que Proust descreveu com tal vividez que é fácil esquecer que elas não existem em algum lugar, talvez em uma sala própria no Louvre.
Mas a visão que Proust faz o narrador extrair dessa arte ima-ginária é hoje tão autêntica e poderosa quanto sempre: “Só pela arte podemos escapar de nós mesmos e saber como outra pessoa vê um universo que não é igual ao nosso, e cujas paisagens, de outro modo, teriam ficado tão desconhecidas quanto as que pode haver na lua”.


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