São Paulo, segunda-feira, 13 de junho de 2011

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Para médicos, dilema sobre tratamento da Aids

Por DONALD G. McNEIL Jr.
Os pacientes de Aids devem ser obrigados a tomar os remédios -agora que, pela primeira vez, existem evidências clínicas sólidas de que as drogas antirretrovirais salvam não apenas a vida dos pacientes, mas também a de seus parceiros sexuais?
Em maio, um teste clínico aleatório mostrou que as drogas diminuíam em 96% as probabilidades de infectar um parceiro.
Essa é uma boa notícia para os infectados e seus namorados. Mas é um dilema moral para os médicos cujos pacientes não querem começar a tomar drogas imediatamente, em geral porque ainda não se sentem doentes e ouviram rumores exagerados sobre os efeitos colaterais.
Vários clínicos de Aids entrevistados para a reportagem disseram achar repulsiva a ideia de forçar um paciente a se tratar.
"Era impensável quando tivemos esse debate no início dos anos 1980 e é impensável em 2011", disse o doutor Myron S. Cohen, da Universidade da Carolina do Norte, que conduziu o estudo que encontrou o índice de 96% de proteção. Ele chamou a ideia de "medieval" e "uma violação dos direitos civis".
Os pacientes recalcitrantes "acabam nos procurando", afirmou o doutor Wafaa El-Sadr, que tratou pacientes de Aids no Harlem e na África durante décadas. "Você tem de falar com eles, falar e falar. Forçá-los os faria fugir."
Ronald Bayer, professor de ética na Escola de Saúde Pública Mailman da Universidade Columbia, concordou, embora explique que "raramente sou eu quem pede restrição -costumavam me chamar de 'doutor Coerção', pois estou mais do lado da saúde pública que dos direitos individuais". Se houvesse pílula capaz de tornar um paciente não infeccioso durante um ano, o tratamento forçado seria imaginável.
Mas não há, e as barreiras práticas para obrigar alguém a tomar pílulas diariamente são enormes. Além disso, segundo vários médicos, seria antiético despender esforços para obrigar uma pequena minoria de pacientes egoístas e autodestrutivos a fazer um tratamento quando tantos outros carecem dele.
No entanto, em muitas circunstâncias jurídicas, as pessoas podem ser obrigadas a fazer tratamentos para proteger os outros. No surto de tuberculose resistente a drogas em Nova York na década de 1990, os pacientes que não cooperavam foram trancados no Hospital Bellevue.
Pacientes mentais podem ser medicados involuntariamente se um juiz ou um painel médico decidir que são perigosos; a "Lei de Kendra" que permite isso no Estado de Nova York recebeu o nome de uma jovem morta por um deles.
Nos EUA, as mulheres com hepatite B podem ser obrigadas a imunizar seus bebês 12 horas depois do nascimento. E a maioria das leis de quarentena escritas há um século, quando a cólera, o tifo e a peste eram comuns, continuam nos livros. "Maria Tifóide" não ficou presa durante 25 anos para receber tratamento. Ela nunca adoeceu, não acreditava em germes, embora fosse sua portadora, e atacou um oficial da saúde pública com um garfo quando ele lhe pediu uma amostra de fezes. Ela foi presa, pois continuou trabalhando como cozinheira, às vezes sob nomes falsos, e infectou 51 pessoas.
O doutor Thomas R. Frieden esteve dos dois lados do dilema. Como diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, ele é um líder no combate nacional à Aids. Como comissário de Saúde da cidade de Nova York durante o surto de tuberculose, teve de prender alguns pacientes.
"Eu vejo uma linha clara entre a tuberculose, que pode ser transmitida só por estar ao lado de outra pessoa em um elevador, e o HIV, que, geralmente, exige uma atividade sexual consensual", ele disse em uma entrevista.
Mas até o sexo consensual não é, ele admitiu, realmente consensual quando alguém é alvo de mentira, está embriagado ou em uma dúzia de outras situações que negariam o ideal de "consentimento informado".
Ele descreveu as entrevistas que fez com homens infectados no início da epidemia. "As histórias eram tristes -rapazes que se mudavam para NY a fim de assumir finalmente a homossexualidade e diziam: 'Eu sei quem fez isso. Só não consigo acreditar que mentiu para mim sobre uma coisa dessas.'"
No entanto, disse, jamais obrigaria, mesmo assim, um paciente a fazer o tratamento. "É um pequeno subgrupo de pessoas que transmitem o vírus mentindo", ele disse, "e as pessoas têm o direito de recusar tratamento."
O doutor Howard Markel, historiador médico na Universidade de Michigan, disse que, mesmo depois de 30 anos, ainda há uma sensação do que ele chamou de "excepcionalidade da Aids" -a crença de que a doença é diferente de qualquer outra, apesar dos precedentes históricos (o óbvio é a sífilis, que, até os antibióticos se tornarem mais comuns, na década de 1940, foi o exemplo de doença fatal de progressão lenta. Para contê-la, testes obrigatórios foram adotados nos EUA; muitos Estados não concediam uma licença de casamento sem um resultado negativo).
"Está na hora de a excepcionalidade da Aids se tornar uma relíquia histórica?", perguntou o doutor Markel. "É uma pergunta interessante. Talvez esteja na hora de a doença se misturar com as outras. Mas talvez isso só aconteça quando aparecer outra que chame a atenção."


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