São Paulo, segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

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ENSAIO

Fantasmas recuperados do nazismo

MICHAEL KIMMELMAN

BERLIM - Operários que faziam escavações em janeiro para a construção de uma nova estação de metrô perto da sede da Prefeitura de Berlim trouxeram à tona um busto de bronze de uma mulher. Estava enferrujado, imundo e quase irreconhecível.
Pesquisadores descobriram que o busto era um retrato criado por Edwin Scharff, modernista alemão quase esquecido, por volta de 1920. Novas esculturas foram desenterradas em agosto: "Garota em Pé", de Otto Baum, "Dançarina", de Marg Moll, e os restos de uma cabeça de Otto Freundlich. Os escavadores também resgataram outro fragmento -uma cabeça distinta, esta pertencente a "Mulher Grávida", de Emy Roeder. Uma nova leva de trabalhos veio à tona em outubro.
As 11 esculturas são sobreviventes de algo que os nazistas chamavam de "arte degenerada". Os registros mostram que várias delas foram confiscadas de museus alemães na década de 1930 e expostas na fatídica exposição "Arte Degenerada". A última notícia que se tinha delas foi que tinham sido guardadas no depósito do Reichspropagandaministerium, que organizou a mostra "Degenerada". Depois disso, as esculturas desapareceram.
Uma exposição das obras descobertas foi organizada e aberta recentemente no Neues Museum, a coleção arqueológica de Berlim.
Como as esculturas, o museu ergueu-se das ruínas da guerra. Na reconstrução inteligente comandada pelo arquiteto David Chipperfield, tornou-se um palimpsesto da história alemã, prestando testemunho de violência que o tempo não apagou.
A pequena mostra é comovente. Seu efeito acaba sendo desproporcional em relação aos objetos descobertos que, esteticamente falando, são bons, mas não notáveis. Arqueólogos determinaram que as obras recuperadas vieram do prédio cujo endereço era 50 Königstrasse, do outro lado da rua em relação à sede da prefeitura. O prédio pertencia a uma judia, Edith Steinitz; vários advogados judeus são listados como seus inquilinos em 1939, mas os nomes deles desaparecem dos registros em 1942, quando o prédio torna-se propriedade do Reich.
Pesquisadores alemães acreditam hoje que, entre seus ocupantes subsequentes, o que mais provavelmente teria escondido os trabalhos de arte foi o advogado tributarista Erhard Oewerdieck.
Oewerdieck não é muito conhecido, mas é lembrado no Yad Vashem, o memorial do Holocausto em Israel. Em 1939, ele e sua mulher deram dinheiro a uma família judaica para ajudá-la a escapar. Além disso, ele escondeu um funcionário em seu apartamento. Em 1941, Oewerdieck ajudou o historiador Eugen Täubler e sua mulher na fuga para os Estados Unidos, conservando parte da biblioteca de Täubler. Ele arriscou sua vida ao escrever uma recomendação de emprego para Wolfgang Abendroth, um opositor do nazismo.
Pesquisadores acreditam que, quando o incêndio decorrente dos ataques aéreos aliados em 1944 consumiu o prédio da 50 Königstrasse, o piso do escritório de Oewerdieck teria ruído, e que o prédio inteiro teria desabado sobre ele. Exames estão sendo feitos com cinzas do sítio para detectar possíveis resquícios de pinturas e esculturas de madeira incineradas. Ainda não está claro como as obras de arte perdidas teriam chegado a Oewerdieck.
Mas agora elas estão expostas outra vez. O busto criado por Scharff de uma atriz chamada Anni Mewes remete às obras egípcias. O bronze "Hagar" (1923), de Karl Knappe, retorcido como uma corda cheia de nós, foi deixado com sua pátina verde de ferrugem, de modo que está quase impossível de ser visto, exceto como evidência do destino que sofreu. Já a "Cabeça" de terracota esmaltada de Freundlich, de 1925, nodosa como uma oliveira idosa, perde pouco de sua contundência pelo fato de estar quebrada.
A exposição do Deutsches Historisches Museum sobre Hitler, a versão de hoje de uma mostra "Degenerada", pretende prevenir os espectadores sobre os perigos de ceder diante do que leis atuais declaram ser moralmente repreensível. "Como pode um alemão decente ter sido induzido a ceder?", questiona a exposição.
Foi exatamente essa a pergunta que a exposição "Degenerada" dos nazistas formulou a respeito da arte moderna. Muito mais alemães visitaram essa exposição do que a mostra concomitante de arte alemã aprovada.
De qualquer maneira, a Alemanha resgatou as obras. A redenção, às vezes, chega com atraso e em medidas pequenas.


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Jackie também foi editora

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