São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

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Revolução, mas sem aquela confusão toda

Por TERRENCE RAFFERTY

"Só ganhamos a guerra", diz o comandante Ernesto Guevara a tantas horas do filme batizado com o memorável apelido dele, "Che". "A revolução começa agora."
Mas não neste filme. A ambiciosa obra de Steven Soderbergh, que foi apresentada na mais recente Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro, consiste em duas partes de 131 minutos cada. A primeira se passa em Cuba, onde Guevara ajudou Fidel Castro a derrubar o ditador Fulgêncio Batista numa longa guerrilha que terminou em dezembro de 1958; a segunda transcorre na Bolívia, aonde Guevara, argentino de nascimento, foi em 1966, para começar uma revolução que, esperava ele, se espalharia por toda a América Latina, e onde ele morreu um ano depois.
O que falta no filme é a própria revolução, cujo início foi tão solenemente anunciado.
Isso é curioso, mas não surpreendente, já que filmes sobre revoluções tendem a abordar a luta e a ignorar a parte mais chata e às vezes mais cruel, que é a do governo revolucionário.
A declaração de Guevara sobre o começo da revolução é verídica e era comovente a ponto de ressurgir, parafraseada, como sinal de sabedoria de um insurgente no clássico "A Batalha de Argel" (1966), de Gillo Pontecorvo. "É bastante duro iniciar uma revolução, até mais duro mantê-la, e o mais duro de tudo é vencê-la", diz um dos líderes militantes mais intelectualizados naquele filme. "Mas só depois, quando ganhamos, é que as verdadeiras dificuldades começam."
Tanto Guevara quanto o seu congênere norte-africano estão, é claro, absolutamente certos: o que acontece depois das batalhas é de fato a parte mais difícil do processo estranho e inerentemente improvisado que é a revolução - tão complicado que muitos líderes, inclusive Fidel Castro, só conseguem manter o poder ao declarar uma espécie de estado permanente de revolução. E como essa estratégia não é muito satisfatória do ponto de vista dramático e humano, os filmes raramente demonstram muito interesse na dinâmica interna dos governos revolucionários.
Mas estranhamente, o tão vilipendiado "Che!" (1969), de Richard Fleischer, com seu ridículo ponto de exclamação, fez pelo menos uma tentativa de abordar os primeiros anos da Revolução Cubana e de examinar a peculiar relação entre Fidel, o líder máximo, e Che, o ideólogo radical; ou mesmo de admitir a cumplicidade de Guevara na orgia de execuções que acompanhou a ascensão do novo regime.
Naturalmente, nunca se vê nada assim nos filmes patrocinados pelos regimes revolucionários, para os quais a arte existe apenas para perpetuar a mitologia heróica da (permanente) luta. Isso vale para Cuba no último meio século e também para a União Soviética nos mais de 70 anos que se passaram entre a Revolução Bolchevique e a perestroika, embora os primeiros cineastas soviéticos tenham se saído muitíssimo melhor na construção de mitos para a causa.
Os primeiros dois filmes de Sergei Eisenstein, "Greve" (1924) e "O Encouraçado Potemkin" (1925), são, apesar da crueza da sua propaganda, altamente excitantes como cinema, cheios de composições eloqüentes e com uma montagem surpreendentemente inventiva. A Cuba de Fidel nunca viveu esse tipo de renascimento cinematográfico, nem mesmo efêmero.
Esse também provavelmente teria sido o caso da Revolução Francesa, caso o cinema tivesse sido inventado a tempo de que Robespierre e afins decepassem a cabeça de diretores assanhados. E embora a esta altura a França seja definitivamente pós-revolucionária, ainda é incomum ver um filme francês que faça total justiça ao banho de sangue em meio ao qual a república nasceu. O filme mais penetrante sobre a Revolução Francesa, "Danton, o Processo de Revolução" (1983), foi dirigido por um polonês, Andrzej Wajda.
Então ainda pode demorar para que conheçamos toda a história do Che, de Fidel e da Revolução Cubana; e, quando ocorrer, certamente virá de fora de Cuba. Provavelmente não de Hollywood, que não tem tido muito sucesso com esse pedaço da história, vide o custoso fiasco de "Havana" (1990), de Sydney Pollack.
Pode-se conhecer um lado mais triste da história com o tocante "Antes do Anoitecer" (2000), de Julian Schnabel, sobre a perseguição ao romancista e poeta homossexual cubano Reinaldo Arenas, e ainda mais com os furiosos documentários "Conduta Imprópria" (1984) e "Ninguém Escutava" (1987), de Néstor Almendros.
Mas isso se você estiver mesmo interessado na verdade, e a verdade nem sempre é de suma importância quando se trata de revolução (ou de filmes, que seja). A revolução, na cabeça de muita gente, tem mais a ver com ideais, loucas esperanças e romance; com fatos demais, o mundo fica impossível de mudar.


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