São Paulo, segunda-feira, 16 de novembro de 2009

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Inteligência/Roger Cohen

Olhando através do abismo


Na divisão entre o islã e o Ocidente, um persistente mistério

Nova York
Fiquei assistindo ao granulado vídeo do major Nidal Malik Hasan numa loja de conveniência de Killeen, Texas, seis horas antes de ele matar 13 pessoas na base americana Fort Hood. Ele sorri, cumprimenta o dono, se demora.
Assim como com as imagens da câmera de segurança mostrando Mohamed Atta ao entrar no aeroporto em Portland, Maine, em 11 de setembro de 2001, ansiamos por alguma pista do que está por vir. Olhamos aqueles olhos e só vemos um vazio. Procuramos algum sinal de loucura e encontramos apenas o mundano. Ficamos frustrados na nossa busca por significado.
Hasan veste um traje branco religioso tradicional; Atta, uma anódina camisa azul e calças escuras. Mas ambos guardam entre si algumas semelhanças como muçulmanos de classe média, bem educados, ambos aparentemente assexuados ou pelo menos sem namoradas conhecidas, vivendo na cultura ocidental enquanto cultivam crenças radicais islâmicas incompatíveis com ela. Hasan queixou-se de que não conseguia encontrar uma noiva suficientemente devota.
Oito anos separam os dois vídeos. Entrementes, em 2005, também temos Hasib Hussain, visto no começo de uma manhã por uma câmera de segurança na estação Luton, conduzindo dois jovens que, horas depois, provocariam a destruição no metrô de Londres. Com seus bonés e mochilas, esses assassinos de Leeds pareciam só mais um grupo de rapazes com roupas norte-americanas.
Todas essas imagens do nosso mundo globalizado aprofundam o enigma sobre o que precisamente empurra para a violência alguns muçulmanos expostos às sociedades dos EUA e da Europa. A persistência desse enigma é uma medida, na primeira década do século 21, do perigoso abismo entre Ocidente e islã. Barack Obama tem corretamente priorizado a aproximação com o mundo muçulmano, mas sem conseguir avanços significativos. Minha sensação é de que a tão onerosa natureza da liberdade ocidental, com sua ausência de absolutismo moral e sua multiplicidade de escolhas, sua cultura consumista e suas liberdades sexuais, é parte daquilo que leva Attas e Hasans a buscarem um furioso refúgio na fé. O Ocidente assoma-se como uma forma de humilhação, uma afronta à civilização islâmica; é percebido ainda como a cultura dos colonialistas franceses e britânicos, intrusos sionistas e imperialistas norte-americanos.
Tornei-me mais pessimista ao longo do último ano quanto à capacidade de Obama de superar esse antagonismo. Ele é um conciliador por natureza. Mas a exasperante guerra no Afeganistão, as profundas frustrações nos mundos árabe e persa e os poderosos lobbies nos Estados Unidos, com mais interesse no confronto do que na conciliação, confinam o presidente. Ele parece apanhado entre uma visão ousada e um cauteloso instinto político.
De uma coisa eu tenho certeza. Não haverá vitória do Ocidente sobre o islã político, nem um triunfo dos laicos moderados sobre os extremistas muçulmanos. As respostas estão nos compromissos entre eles. São precisamente tais compromissos que o movimento reformista iraniano busca, um meio-termo combinando o islã com o pluralismo moderno.
Foi essa uma das ideias por trás da Revolução Iraniana, há 30 anos. Ela agora está desqualificada, mas sua importância permanece.
Dez anos depois daquela revolução, o Muro de Berlim caiu. Mas logo outra barreira se ergueu: a cerca israelense de segurança, que já se estende por mais de 400 km, isolando a Cisjordânia.
Se a democracia israelense é uma projeção da cultura liberal ocidental, e a Palestina cada vez mais encolhida é hoje uma causa central para o islamismo, então a cerca encarna o fracasso em superar o abismo entre ambos. É a expressão mais visível da falha geológica por trás do mistério das imagens de Atta e Hasan. Muros e paz não andam juntos; nem na Europa, nem no Oriente Médio.


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