São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 2011

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Espiões de Le Carré de volta ao cinema


Converter romances de Le Carré em filmes é um desafio

Por TERRENCE RAFFERTY

O inglês David Cornwell, que assina seus livros com o pseudônimo John le Carré, vem produzindo best-sellers há quase cinco décadas, escrevendo livros com tramas complexas que praticamente imploram para não ser transpostas para o cinema. De seus 22 romances, quase todos sobre o tema da espionagem, tão apreciado pelo cinema, apenas sete fizeram a perigosa travessia para a tela grande. Três outros foram adaptados como minisséries de televisão, e outro como filme para a TV.
Um oitavo longa-metragem baseado em um livro de Le Carré, "O Espião que Sabia Demais", com lançamento mundial em dezembro, ilustra bem as dificuldades enormes que o trabalho deste contador de histórias sutil e astuto cria para o diretor de cinema. As histórias de Le Carré sempre acontecem em uma espécie de terra de ninguém, um território disputado pela razão, a moralidade e até mesmo a verdade. Publicado originalmente em 1974, "O Espião que Sabia Demais" é uma história da Guerra Fria extremamente difícil de desvendar. Le Carré usou o mesmo pano de fundo para um de seus livros mais vendidos, "O Espião que Veio do Frio", cuja adaptação para o cinema, feita em 1965 e estrelada por Richard Burton, foi um sucesso de crítica.
O romance, o terceiro de Le Carré, tinha sido uma sensação editorial; passou mais de um ano na lista do "New York Times" dos livros mais vendidos. Parte da atração do livro estava em seu aparente realismo em relação aos detalhes sórdidos da espionagem internacional. Os espiões amarfanhados e de ar deprimido de Le Carré não lembravam muito o impossivelmente glamoroso James Bond, de Ian Fleming. (Antes de se tornar John Le Carré, David Cornwell trabalhou para a inteligência britânica, onde, ao que parece, não conheceu nenhum 007.)
As adaptações cinematográficas seguintes, como "Chamada para um Morto", de 1966 (baseada no livro "O Morto ao Telefone"), e "The Looking Glass War" (1969), não foram sucessos. O que as adaptações fracassadas deixaram claro foi que as técnicas narrativas do autor eram complexas demais para o cinema.
Le Carré talvez seja o mais excêntrico construtor de ficção na literatura inglesa desde Joseph Conrad.
Suas histórias são repletas de digressões e extensos flashbacks; ele passa um tempo enorme dando voltas em torno de sua trama, como se estivesse fazendo um trabalho de reconhecimento antes de se decidir a atacar. E as texturas verbais dos livros também podem ser complicadas, porque seus espiões tendem a falar em seu jargão próprio, que soa como um discurso normal mas não é exatamente isso.
Na década de 1970, os livros de Le Carré se tornaram ainda mais temíveis: mais densos, mais complexos, mais obstinadamente ambíguos. "O Espião que Sabia Demais", seu sexto romance, foi, na época, o ato narrativo mais contorcido e labiríntico que ele já perpetrara. É um romance em que o personagem mais famoso de Le Carré, o astuto espião George Smiley, durante uma operação para desvendar a identidade de um agente duplo soviético no serviço de inteligência britânico, ouve história após história sobre os fracassos e os aparentes êxitos de sua agência. Ele se descobre constantemente relembrando sua própria história, reinterpretando tudo o que pensava que soubesse. É uma performance notável, tanto por parte do escritor quanto de seu herói cheio de problemas.
No novo "O Espião que Sabia Demais", a Guerra Fria está de volta em toda sua glória soturna e paranoica, que enxerga o mundo através de lentes muito sombrias, mas, mesmo assim, cria um clima nostálgico. O estilo visual do diretor Tomas Alfredson é soturno, enxuto, crepuscular, e seu ritmo é contemplativo. E, como se administrar as mudanças de registro temporal do livro não fosse desafio suficiente, ele acrescentou um flashback que não aparece no livro: uma sequência de festa de Natal em que os personagens são vistos bebendo e rindo nos bons velhos tempos em que eles (quase) confiavam uns nos outros. O filme retorna repetidas vezes a esta cena, que não avança na trama. É um tom inesperado; Le Carré nunca adotou esse tom em nenhum de seus livros.
Mas, para quem viveu a Guerra Fria, como ele, talvez ainda pareça muito estranho que ela tenha realmente acabado, que esteja morta há 20 anos.



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