São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 2011

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INTELIGÊNCIA
ROGER COHEN


O novo herói

Bellagio, Itália
O legado dos impérios tende a ser feito de ressentimento. Durante muito tempo o mundo árabe não foi exceção a essa regra, enxergando a Turquia com a desconfiança nascida do longo domínio otomano. Por isso, a conversão do "sultão Erdogan" em herói de árabes, festejado de Túnis a Ramallah, é notável.
O ressurgimento da Turquia como potência regional sob a égide do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan tem sua origem em três fatores. Para começar, Erdogan demonstrou que um movimento islâmico antes radical, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), é capaz de aderir ao dar e tomar da democracia. Pelo fato de a Primavera Árabe ser um levante de fiéis muçulmanos contra o despotismo, o exemplo dele é importante.
A Turquia tomou o lugar do Irã como ponto de referência para os políticos islâmicos de países recém-libertados que sabem que precisam reivindicar legitimidade através das urnas, e não, como o Irã, através do profeta. Esses políticos se retratam como "Erdogans" líbios ou egípcios. Uma medida da transformação na região é que a própria ideia de evocar o nome do aiatolá Khomeini como exemplo parece absurda.
Em segundo lugar, Erdogan assumiu uma postura forte com relação aos direitos dos palestinos, e assim -fato curioso para um turco e descendente dos odiados otomanos- tornou-se o político do Oriente Médio mais identificado com o orgulho árabe. A caracterização que ele fez de Israel como sendo "filho mimado do Ocidente" -repetida no Egito no início de seu chamado tour da Primavera Árabe- e suas críticas firmes a Israel pelo ataque contra o navio Mavi Marmara em águas internacionais, sob bandeira turca, também encontraram eco.
Em terceiro lugar, a Turquia, membro da Otan repudiado pela União Europeia, reposicionou-se de maneira que vem alimentando uma economia em crescimento. O país deixou de ser um subúrbio do Ocidente e se tornou ponto focal da Eurásia. Trocas comerciais no valor anual de US$2 bilhões hoje fluem pela fronteira de 870 quilômetros de extensão com a Síria, fechada e minada durante a Guerra Fria mas que hoje prescinde de visto para ser atravessada. O comércio com outros países vizinhos também vem crescendo, na medida em que a Turquia segue o exemplo da UE, usando vínculos econômicos para forjar laços políticos.
Caracterizada por críticos americanos como movimento abrupto em direção ao Oriente, o deslocamento geoestratégico da Turquia na realidade não passa de um ajuste lógico à estagnação ocidental, o preconceito europeu e as oportunidades emergentes. Esse deslocamento vem sendo inspirador para uma região que, durante muito tempo, preferia apontar outros bodes expiatórios para explicar suas falhas.
O maior desafio ao novo papel regional da Turquia vem da repressão brutal movida pelo presidente Bashar Assad na Síria. Em nome do comércio e da estabilidade crescentes, Erdogan poderia ter silenciado. Mas ele e seu astuto chanceler, Ahmet Davutoglu, sabem que a aura atual da Turquia no mundo árabe está ligada ao antiautoritarismo, dignidade e direitos individuais. Aplaudo Erdogan por sua ousadia em afirmar que a Turquia está ao lado do povo sírio e que o mundo não tem lugar para sistemas unipartidários fechados. Foi um teste importante; ele foi aprovado.
Outro teste é iminente em torno de Israel. Erdogan não deve ceder às tentações populistas de converter críticas legítimas em tiradas destrutivas. As relações diplomáticas entre Turquia e Israel, que se encontram degradadas no momento, ainda constituem uma ponte entre o mundo muçulmano e o Estado judaico.
Erdogan tem razão em exigir um pedido de desculpas de Israel pela morte desnecessária de oito de seus cidadãos e tem razão em pressionar o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a parar de prevaricar em torno da Palestina. Mas ele deveria também denunciar a turba egípcia que invadiu a embaixada israelense no Cairo e queimou a bandeira israelense. Esse seria um ato de um estadista, algo que reforçaria sua postura em favor de um Oriente Médio estável e aberto.
Erdogan também precisa resistir às tentações autoritárias em casa e mostrar que sua adesão aos direitos individuais abrange também os curdos e sua política de boa vizinhança com a Armênia. É possível superar a história negativa também nessas frentes.
A Turquia é uma potência crucial no século 21. A Europa deveria parar de se remoer e permitir o acesso dela à UE até 2015.

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