São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Esta Copa está diferente


África do Sul mostra ao mundo aonde já chegou e quanto falta percorrer

JOHANNESBURGO

Meus antepassados chegaram à África do Sul no começo do século 20, vendendo penas de avestruz, mantendo uma pensão de dúbia reputação numa Johannesburgo tomada pela febre do ouro e, mais tarde, fundando uma loja de departamentos.
Embora eu tenha nascido em Londres, minha infância foi pontuada por longas temporadas aqui.
Comendo churrasco em torno de piscinas familiares, em subúrbios flamejantes com a florada dos jacarandás, falávamos de como as piscinas ficariam vermelhas de sangue dentro de um ano, quando o sistema de supremacia branca do apartheid desabasse e a maioria negra partisse para a sua inevitável vingança.
Mas, ao menos dessa vez, os apocalípticos estavam errados.
Graças a Nelson Mandela, com alguma ajuda do último presidente branco, F.W. de Klerk, a África do Sul escapou de um destino como o do Zimbábue. Ela fez uma transição, se não para uma "nação do arco-íris" (frase de Mandela), pelo menos para a liberdade.
Ainda há 4,5 milhões de brancos aqui, numa população de 49 milhões, e, embora esta bela terra esteja assolada pela pobreza e a criminalidade, todos sentem certo orgulho de uma identidade sul-africana. É fácil demais, diante de problemas persistentes, esquecer como esta nação esteve perto do abismo.
Este não é um relato objetivo sobre a abertura da primeira Copa do Mundo africana, e sim um texto permeado de solidariedade histórica a um país que -num continente notável pela ausência disso- experimenta dois ingredientes centrais de sociedades saudáveis: liberdade e aquilo que o presidente Jacob Zuma chamou de "não racialismo".
Tal solidariedade, no entanto, não pode ocultar um fato já evidente: não estamos na Alemanha, que organizou a Copa em 2006 com eficiência e autoconfiança. Como tantos outros, já me vi retido no trânsito, tendo de andar quilômetros até um estádio (o Soccer City, perto do antigo subúrbio negro de Soweto) e pedindo em vão orientações a funcionários perplexos.
Alguns ingressos não correspondem ao assento real. Houve distúrbios em Durban envolvendo seguranças descontentes com o salário. Os ônibus não aparecem, ou param nos congestionamentos. Torcedores esquecidos acabam encharcados na Cidade do Cabo. Dignitários em Johannesburgo sofrem indignidades como chegarem atrasados a um jogo.
Não estamos na Alemanha, e sim num país onde a maioria dos negros ainda vive em barracos, onde apenas 60% dos lares têm banheiros com descargas, onde 75% das pessoas ganham menos de US$ 7.000 por ano, onde se estima que haja 6 milhões de portadores do HIV, e onde o desemprego é de 25%, maior taxa do planeta. Então sente e relaxe, esta Copa vai ser diferente. Supostamente era isso que a Fifa queria ao escolher a África do Sul, e tomara que pelo menos alguns torcedores estejam preparados para aceitar isso.
Uma Copa do Mundo africana, no começo do século 21, é um passo importante na mudança das percepções sobre um continente que o Ocidente sempre esteve pronto para saquear, mas raramente preparado para aceitar nos seus próprios termos. Como a África do Sul, o continente está crescendo e se tornando ainda mais livre, mas suas mazelas familiares -doença, indigência e violência- persistem.
Talvez o maior confronto cultural até agora tenha sido por causa das vuvuzelas. Muitos estrangeiros se sentem ultrajados. Eles estão entre os milhões que hoje em dia gostam de viajar milhares de quilômetros, mas preferem que seu destino reproduza a paz e os confortos de casa.
As emissoras estrangeiras se queixaram. Uma página do Facebook chamada "Stoppt die vuvuzela-tröten bei der WM 2010" ("Parem as vuvuzelas na Copa-2010", em alemão) tem mais de 6.000 fãs, e a versão em inglês passa dos 100 mil adeptos.
É verdade que as cornetas dão uma terrível dor de cabeça. Elas afogam os gritos, até na hora do gol. Impedem que os jogadores se ouçam. Mas, como disse no Twitter o comediante local Trevor Noah: "Passado um fim de semana, a Europa quer proibir a vuvuzela -quem dera eles tivessem agido tão rápido para proibir a escravidão".


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