São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Filas sucumbem ao livre mercado

ANAND GIRIDHARADAS
ENSAIO

MUMBAI, Índia - Existe uma qualidade felina em fazer fila na Índia. Algumas partes do homem atrás de você -não se sabe quais- esbarram no seu corpo; é a melhor forma de evitar os fura-filas.
Mas estes pairam perto da metade da fila, parecendo perdidos de uma maneira ensaiada. Então, se esgueiram em algum ponto perto da frente. Quando confrontados, seu refrão é previsível: "Oh, eu não vi a fila!".
Em uma Índia fervilhante de gente, porém, a fila ganha uma nova força. As empresas tornam-se mais vigilantes quanto à exigência de filas, e uma classe média crescente já está menos ávida a furar. Assim, a experiência indiana parece alimentar-se de uma tradição que vê a etiqueta como um símbolo de modernidade, ou a graduação do caos para a ordem, da brutalidade para a gentileza, da escassez para a abundância.
Mas a ideia predominante de modernidade envolve não apenas uma evolução para as filas, como também uma evolução para fora delas. Conforme o empurra-empurra sucumbe à fila, esta está sucumbindo ao livre mercado.
A história do empurra-empurra, da fila e do mercado começa, na maioria das versões, em um estado de natureza hobbesiano.
As pessoas conseguiram o que conseguiram conforme sua capacidade de empurrar e puxar, mutilar e matar. Foram necessárias novas ideias -de justiça, igualdade e outras- para trocar empurrões por filas.
Mas a fila também representa uma disfunção: filas para receber caridade nas depressões; filas na União Soviética para comprar produtos básicos como carne e papel higiênico; filas para tirar carteiras de motorista em todo o mundo; filas em que mulheres pobres esperam para defecar atrás de portas fechadas.
A solução moderna: livre mercado. Por que esperar? Basta pagar.
Hoje, os shopping centers da Rússia se erguem do chão onde as filas soviéticas se insinuavam; aldeões afluentes nos países em desenvolvimento compram latrinas portáteis; os governos emitem vistos "rápidos" para que viajantes de negócios possam furar a fila, por algumas centenas de dólares a mais.
Você vê isso na Índia. O famoso templo hindu de Tirupati, no sul do país, hoje tem uma excursão comum para ver os ídolos e outra para os que pagam. Muitos clubes noturnos vendem afiliações "premium" que permitem evitar a fila.
Os mercados têm muito a oferecer sobre as filas. Eles são mais eficientes: funcionam bem para os que têm a sorte de ter mais dinheiro disponível do que tempo livre. Eliminam grande parte da agonia diária de esperar.
Mas o mercado também muda a cultura. A fila concebe as pessoas como cidadãs supostamente iguais. Um mercado as concebe como consumidoras, supostamente desiguais -quem pode pagar passa à frente dos outros.
De certa maneira, a disseminação do mercado é uma volta a outro tipo de empurra-empurra, em que o poder financeiro, e não o físico, representa o direito. Talvez um dia as filas sejam lembradas como uma antiguidade, um sistema bizarro em que as coisas eram concedidas simplesmente por ter chegado cedo, um interlúdio de relativa igualdade entre os empurrões que reinaram antes e depois.


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