São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Uma ânsia por pirar

Politicamente correto versus nostalgia por luxúria e embriaguez

PARIS - Andando pela Europa, nas últimas semanas -Reino Unido, França, Espanha-, fico encontrando gente que usou parte das suas férias para assistir às três primeiras temporadas da premiada série de TV americana "Mad Men".
Eles não se fartam do embriagado mundo de uma fictícia agência de publicidade da década de 1960, a Sterling Cooper Draper Pryce, com seus almoços regados a três martinis, seus flertes e fornicações, sua vida de cores primárias, sem o filtro da moral.
Uma reação típica foi a de um amigo que não podia conter seu prazer ao narrar uma cena em que, numa das infindáveis festas, uma criança esbarra num convidado, que derrama seu uísque e dá um tabefe na cara do menino. O garoto vai chorando até o seu pai, conta o que ocorreu -e leva um segundo tapa, para aprender que não deve correr pela casa.
Claro, é assim que a disciplina costumava ser imposta antes que conselheiros educacionais ficassem todos melosos -e antes que a embriaguez e a luxúria no local de trabalho, e a voz pastosa durante a tarde, fossem sacrificadas no altar da produtividade.
O que está havendo aqui? Por que essa ânsia por "Mad Men"?
Acho que estamos vendo os fulgores de uma reação libertária a todas as muitas restrições causadas pelo politicamente correto, o ecologicamente correto, as obsessões com a saúde, a politização da comida, a intrusão tecnológica e os Estados que acham que sabem mais do que a gente.
Para um crescente número de pessoas, parece fazer pouco sentido viver mais, mesmo com milhões de aplicativos, se o maluco interior de cada um fica permanentemente amarrado.
Então, o lado bom que eu vejo em os Estados ficarem sem dinheiro é que eles estão menos inclinados a desperdiçá-lo metendo o nariz nos assuntos de todo o mundo. No Reino Unido de David Cameron, os radares de trânsito, pesadelo de todo motorista, estão sendo sacrificados pelas restrições orçamentárias.
Um oneroso projeto para dar carteiras de identidade aos britânicos foi arquivado. A palavra "libertário", na verdade, é parte do léxico da coalizão conservadora-liberal.
Já era hora. O Estado, acuado depois de Reagan e Thatcher, se beneficiou nos últimos anos da oscilação de um pêndulo que foi longe demais. A política, a economia e a tecnologia tiveram participação nisso.
A tecnologia deu aos Estados poderes de vigilância com os quais os totalitários do século 20 poderiam apenas sonhar. O mantra da segurança, nascido em Manhattan em 11 de setembro de 2001, forneceu o acompanhamento perfeito para esse surto de intrusão estatal.
Então veio a Grande Recessão de 2008. Ela jogou por terra qualquer ilusão restante de que os mercados funcionariam perfeitamente e que a supervisão estatal sobre eles deveria ser mínima. A situação sugeria, pelo contrário, que os mercados são infinitos na sua engenhosidade para enriquecer além da conta os poucos que estão sem supervisão.
A força motriz por trás de toda a loucura imobiliária nos dois lados do Atlântico não foi o desejo de que todos tivessem seu próprio teto, e sim a necessidade de Wall Street de colocar à venda mais hipotecas securitizadas duvidosas.
Quando a música parou, coube ao Estado salvar as economias americana e britânica. A ideologia prevalente acompanhou os bilionários resgates, colocando em voga novamente o papel moderador do Estado para o capitalismo.
Esse papel tem seu valor. Como a Europa aprendeu há muito tempo, o capitalismo desenfreado causa um custo humano inaceitável.
Mas o mesmo faz o Estado, armado de computadores, ao se meter nas vidas privadas em nome de uma segurança político-econômica que facilmente se torna sinônimo de uma entorpecente pressão conformista.
É a liberdade que define a comunidade atlântica. Como escreveu Thomas Jefferson, "a verdade é grande e irá prevalecer se deixada por si só". A não ser, claro, que a "interposição humana" desarme a verdade "das suas armas naturais, o livre argumento e o debate".
Um toque de embriaguez, mesmo no almoço, nunca fez mal a esse debate. As pessoas querem tirar das suas costas o Estado, as câmeras e todo esse papo apocalíptico de aquecimento global. Elas querem libertar seu Don Draper interior, o homem que diz: "O medo estimula a minha imaginação".


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