São Paulo, segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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ENSAIO - NICOLAI OUROUSSOFF

Salvando o legado, e o tecido da vida, na Síria

ALEPPO, Síria - À primeira vista parece uma cena banal: uma praça tranquila sombreada por palmeiras, perto da imensa Cidadela medieval desta cidade, recém-restaurada ao seu antigo poder. Turistas estrangeiros sentam-se ao lado de pessoas cujas famílias vivem aqui há gerações.
Mas esta praça é a peça central de um dos mais abrangentes projetos de preservação no Oriente Médio, que dá tanta importância às pessoas quanto aos edifícios onde elas moram.
O projeto inclui a reconstrução de ruas e a modernização dos serviços urbanos, a restauração de centenas de casas, planos de um parque de 17 hectares em um bairro pobre e a restauração da própria Cidadela.
A iniciativa tenta reverter 50 anos de história durante os quais a preservação, ao se concentrar nas grandes obras arquitetônicas, às vezes destruiu as comunidades ao seu redor.
Oferecendo uma série de incentivos para proprietários de casa e comerciantes, a nova abordagem já ajudou a estabilizar as comunidades carentes, em uma parte do mundo onde os programas sociais mais eficazes para os pobres são com frequência dirigidos por organizações extremistas como o Hizbollah e a Fraternidade Muçulmana.
"O projeto de Aleppo é um modelo excepcional", disse Daniele Pini, um preservacionista que trabalhou para a Unesco, o braço cultural da ONU. Em lugares como o Cairo e a Jordânia, ele disse, aqueles que restauram prédios históricos e os que vivem neles muitas vezes estão em posições opostas.
"A palavra 'athar' -antiguidades- tornou-se um termo horrível porque significa preservar nossas casas, mas não nossas tradições", disse Omar Hallaj, executivo-chefe do Fundo de Desenvolvimento da Síria.
As tensões aumentaram com o boom do turismo global. A Cidade Velha de Damasco, por exemplo, tornou-se na última década um grande atrativo para o turismo internacional e para os árabes que viajam mais perto de casa depois do 11 de Setembro.
Mas, enquanto o governo local corre para preservar sua personalidade, as casas com pátios centrais estão sendo transformadas em hotéis e restaurantes elegantes. Damasco introduziu incentivos para manter alguns proprietários, mas muitos acham que é tarde demais.
O plano de Aleppo, disse Pini, "permite que as pessoas adaptem as casas antigas às necessidades da vida moderna".
Liderado pela GTZ, uma organização sem fins lucrativos de propriedade do governo alemão, e pelo Fundo Aga Khan para a Cultura, o projeto começou com uma análise das estruturas históricas da cidade e entrevistas com moradores. Empréstimos sem juros incentivaram donos de prédios e seus inquilinos a ficar.
O que torna o projeto um modelo auspicioso para a região é sua compreensão de como a arquitetura pode moldar as relações entre grupos sociais. Os pobres parecem tão à vontade quanto os ricos ao passear pela Cidadela, o que é notável, já que a Síria é dirigida pelo governo autoritário de Bashar al Assad.
Em um discurso que fez em Aleppo dois meses depois do 11 de Setembro, o Aga Khan descreveu sua missão como criar um jardim intelectual "onde não houvesse chance de sufocamento pelas ervas agonizantes do dogma" e "a beleza seria vista na articulação da diferença".
Mas não está claro como fazer a junção final entre preservação histórica e a criação de uma cidade contemporânea. Muitos conservacionistas que trabalham aqui veem os últimos 70 anos como indignos de seu interesse. E a maioria dos arquitetos contemporâneos, cujos clientes são quase sempre membros da elite global, não tem contato com as complexas realidades políticas dos pobres da região.
A força de cidades como Aleppo e Damasco não é apenas a beleza das camadas históricas. É que a coexistência dessas camadas personifica um mundo em que cada geração tem o direito a uma opinião e a criatividade individual triunfa sobre a diferença ideológica.


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