São Paulo, segunda-feira, 24 de agosto de 2009

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Um escritor que aprecia brincadeiras

Por LARRY ROHTER

CIDADE DO MÉXICO — Alguns anos atrás, Mario Bellatin participou de uma dessas conferências literárias em que os escritores devem falar sobre seus autores favoritos. Sem querer fazer uma opção, ele inventou um autor japonês chamado Shiki Nagaoka e falou, com aparente convicção, sobre como Nagaoka o havia influenciado profundamente, imaginando que a brincadeira seria desmascarada durante a fase de perguntas e respostas.
Em vez disso, a plateia lhe fez muitas perguntas sobre Nagaoka, que teria um nariz tão imenso que o impediria de comer. Então, Bellatin, romancista mexicano, decidiu prolongar a piada e escreveu uma biografia falsa chamada “Shiki Nagaoka: Um Nariz para a Ficção”.
Os leitores passaram a esperar essas escapadas de Bellatin, 49, que surgiu como uma das principais vozes na ficção experimental em espanhol. Em uma série de novelas escritas desde 1985, ele não apenas brincou com as expectativas de leitores e críticos, como também moldou a linguagem, a trama e a estrutura para se adequarem a seus objetivos misteriosos, de maneiras muitas vezes tão perturbadoras quanto surpreendentes.
Em um sinal de sua crescente reputação internacional, Bellatin assinou recentemente um contrato com a editora francesa Gallimard, que estipula que suas obras sejam editadas na França antes da publicação em espanhol na América Latina. Como sempre, ele aproveitou essa oportunidade para brincar: em vez de publicar seu manuscrito original no México, ele pretende mandar alguém verter a tradução francesa de volta para o espanhol.
“O escritor é sempre o último a chegar à festa, último a se divertir com o ato da escrita”, queixou-se Bellatin. “Quero ler minha própria produção e me surpreender, ser capaz de ler a mim mesmo como se eu também fosse um leitor que visse meu texto pela primeira vez.”
A primeira de suas obras a ser traduzida ao inglês, a coletânea “Chinese Checkers” (Xadrez Chinês), apareceu apenas nos últimos anos. “Salão de Beleza”, de 1994, foi publicado pela City Lights Books de San Francisco neste mês.
Como grande parte de sua obra, “Salão de Beleza” é preciso, alegórico e perturbador, com uma trama que lembra “A Peste”, de Camus, ou “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. Em uma cidade sem nome que sofre de uma epidemia sem nome, um cabeleireiro travesti transformou sua loja em um hospício para homens que estão morrendo da doença e cuida deles de modo tão indiferente quanto dos peixes em seu aquário.
Muitas novelas de Bellatin, incluindo “Salão de Beleza” e “Shiki Nagaoka”, se concentram em personagens cujos corpos são desfigurados ou doentes, ou cuja identidade sexual é incerta ou fluida.
O próprio Bellatin não tem grande parte do braço direito, resultado de uma deficiência congênita. Dependendo de seu humor, ele às vezes aparece usando uma prótese com um gancho, que escolhe entre sua coleção de mais de uma dúzia.
“As pessoas muitas vezes dizem, com grande verdade, que toda boa ficção vem de algum ferimento, de uma certa distância que precisa ser vencida entre o escritor e a normalidade”, disse o romancista e crítico Francisco Goldman, amigo de Mario Bellatin. “No sentido de Mario, a ferida é literal e vem com todo tipo de matiz e dor psicológica, e parece relacionada à sexualidade e ao desejo, o desejo de um corpo inteiro.”
Apesar de Bellatin ter nascido no México, seu pai era um imigrante do Peru de origem italiana. Ele passou parte de sua juventude no Peru antes de ganhar uma bolsa para estudar cinema em Cuba. Depois de voltar ao México, converteu-se ao ramo sufi do islamismo e também escreveu sob o nome de Abdul Salaam.
“Para mim, a literatura é um jogo, uma busca por maneiras de vencer os limites”, ele disse. “Mas, no meu trabalho, as regras do jogo são sempre óbvias, as vísceras são expostas, e pode-se ver o que está sendo preparado.”


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