São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2011

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

INTELIGÊNCIA/MICHAEL J. KOPLOW

O caminho para o pós-islamismo

Os islâmicos vão anunciar o fim de sua ideologia?

WASHINGTON
Quando os tunisianos forem às urnas, em 23 de outubro, para eleger a primeira Assembleia Constituinte desde a deposição do presidente Zine el-Abidine Ben Ali, em janeiro, muito mais estará em jogo que as aspirações democráticas de um país de apenas 10 milhões de habitantes. Assim como os acontecimentos na Tunísia desencadearam protestos e renovação política em todo o mundo árabe, a eleição e o que vier a seguir têm o potencial de revolucionar o islã, que vem sendo um dos movimentos ideológicos mais duradouros e bem-sucedidos do último século. Vários fatores podem criar o ambiente ideal para os islâmicos se lançarem num caminho pós-ideológico, ou, ironicamente, pós-islâmico.
Os grupos políticos islâmicos árabes, que apresentam visões de um Estado muçulmano ideal em que o direito islâmico governe não apenas as relações sociais, mas também a política, são há décadas a maior força política do mundo árabe. Após o fracasso dos movimentos socialistas revolucionários e pan-árabes em meados do século 20, os islâmicos estavam bem posicionados para capturar o fervor ideológico que ainda restava. Eles tinham uma mensagem coerente e popular que imbuiu muitas pessoas de um senso de missão e conquistou a adesão de muitas pessoas fartas de viver sob a égide de ditadores corruptos e nada inspiradores.
Mas a primavera árabe trouxe uma mudança importante, ao reduzir a ênfase sobre a ideologia e colocar em primeiro plano preocupações práticas, como democracia e igualdade econômica. Isso solapou a narrativa promovida havia muito tempo por líderes autoritários no Oriente Médio que pintavam os movimentos oposicionistas como sendo de radicais religiosos. Consequentemente, a natureza não ideológica dos protestos da primavera árabe pegou Ben Ali e o presidente egípcio, Hosni Mubarak, desprevenidos. As centenas de milhares de manifestantes na praça Tahrir, que também incluíam um número considerável de islâmicos, reivindicavam não a ascensão de um Estado islâmico, mas a queda do regime corrupto.
De fato, a paisagem política emergente na Tunísia e no Egito poderia ser descrita como pós-ideológica, na qual apelos abertos à ideologia estão sendo abrandados em favor de programas políticos mais universais e práticos. Os islâmicos vão ter que se adaptar a essa nova realidade, na qual mensagens políticas e econômicas populistas, mas não ideológicas, encontram mais eco popular que os apelos à religião.
O exemplo islâmico mais visível desta tendência é o governista partido da Justiça e do Desenvolvimento turco, conhecido como AKP. É um partido islâmico que defende poucas políticas islâmicas tradicionais discerníveis como tais e que já venceu três eleições consecutivas. Quando vivi em Istambul, no ano passado, algo que chamou minha atenção foram as intermináveis manifestações de nacionalismo secular, desde as fotos de Mustafa Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, na geladeira do meu apartamento alugado, até as enormes bandeiras turcas hasteadas ao lado das pontes sobre o Bósforo, sem qualquer símbolo religioso correspondente, e isso em um país governado por um partido islâmico.
Isso se deve em parte à singular história da Turquia, mas também guarda relação com a natureza do islamismo praticado pela AKP, que se orgulha do passado religioso de seus políticos, ao mesmo tempo em que governa da modo secular. O premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, goza de enorme popularidade no mundo árabe, e suas visitas recentes ao Egito e Tunísia chamaram a atenção para seu tipo próprio de islamismo moderado.
Os islâmicos dominantes na Tunísia também representam um desafio à versão mais rígida do islamismo. O Ennahda, o popular partido islâmico da Tunísia que tinha aderido à democracia e às influências ocidentais bem antes da primavera árabe, lidera as pesquisas pré-eleitorais. Rachid Ghannouchi, fundador e líder do Ennahda, escreveu décadas atrás que secularismo e liberdade são preferíveis à sharia e ao autoritarismo, e o partido se comprometeu a respeitar o secular Código de Status Pessoal tunisiano -que rege questões sociais, como casamento, divórcio e guarda dos filhos- caso chegue ao poder.
É um contraste marcante com a Irmandade Muçulmana do Egito, que reafirmou seu compromisso em implementar a sharia e está baseando sua campanha em temas explicitamente islâmicos.
Enquanto o Ennahda tem pouco mais de 20% das intenções de voto, sendo pouco provável que conquiste o controle majoritário direto, é possível que seja o maior partido na Assembleia Constituinte tunisiana. Se isso acontecer e se o partido respeitar sua promessa de não mudar a natureza secular do Estado tunisiano, continuando a condenar as ações dos islâmicos salafistas mais radicais, vai transformar o islamismo como movimento político, tornando-se o novo modelo.
Os partidos islâmicos precisam adaptar-se à realidade política nova e proclamar que "o islã é a solução", mas que sem uma plataforma que trabalhe com sociedades mais abertas deixará de ser viável. A chave do sucesso consiste em casar o islã com as liberdades políticas e civis.
Assim como a Tunísia abriu o caminho para movimentos revolucionários no Egito, Bahrein, Iêmen e Síria, seu partido "pós-islâmico" pode fazer o mesmo por partidos islâmicos da região. Se o mundo árabe ingressou em uma nova era em que preocupações palpáveis precedem a ideologia, os partidos islâmicos também terão que mudar suas prioridades.

Michael J. Koplow é doutorando em governo na Universidade Georgetown, onde estuda o Oriente Médio. Trabalhos dele já saíram na "Foreign Policy", "Security Studies" e "The Atlantic". Envie comentários para intelligence@nytimes.com


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