São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2011

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INTELIGÊNCIA/MATTHEW CARR

Uma adaptabilidade cultural

O planalto do nordeste da Eslováquia pode parecer um lugar improvável para basear um argumento contra o medo da Europa diante da perspectiva de um "êxodo bíblico" de migrantes fugindo da turbulência política no norte da África. Mas tal canto remoto da Europa, onde vivem cerca de 24 mil integrantes da mais antiga e menos conhecida das minorias étnicas da Europa oriental, os rutenos, tem lições a oferecer para nossos tempos. Os rutenos vivem há séculos uma existência precária e frequentemente marginalizada nas fronteiras entre impérios. Em momentos distintos de sua história, foram poloneses, tchecos, eslovacos ou ucranianos.
Em lugar de nutrir obsessão com os males do multiculturalismo e o fim iminente das identidades nacionalidades -e de tentar proteger essas nacionalidades por trás de fronteiras rígidas-, a Europa e outras democracias ocidentais podem aprender lições de sobrevivência e adaptabilidade com os rutenos. Enquanto maiorias poderosas na Europa e nos Estados Unidos falam em tom sombrio sobre sua transformação em "Eurábia" ou "Mexamérica", os rutenos não apenas conservaram sua identidade cultural como também se adaptaram e assimilaram novas identidades.
As pitorescas florestas da terra de origem dos rutenos evocam imagens do clássico do cinema tcheco "Trens Estreitamente Vigiados". A noção da pop art parece algo muito distante. Mas, a alguns quilômetros apenas de distância da fronteira polonesa, aqui na cidade de Medzilaborce, uma grande lata de sopa Campbell's perto da sonolenta estação de trem anuncia a localização incôngrua e improvável do Museu Andy Warhol de Arte Moderna, que celebra Andyho Warhola, nascido em Pittsburgh, em 1928, de pais rutenos.
O museu fica diretamente em frente a uma belíssima igreja com telhado em cúpula, em um grande prédio retilíneo decorado com faixas em estilo pop art que, no passado, foi destinado a ser um "palácio da cultura" comunista. Em seu interior, o som de "Venus in Furs", do Velvet Underground, forma a trilha sonora de uma exposição de alto nível de pinturas e estampas de Andy Warhol e seu irmão Paul, além de artefatos e memorabília doados pela família Warhol.
O pai de Warhol nasceu no povoado vizinho de Mikova, e é por essa razão que Michal Bycko construiu o museu neste lugar, em 1991, com a colaboração de um irmão de Warhol, John. Hoje, o rosto inescrutável de Andy Warhol, usando óculos de sol, está presente em toda parte nesta cidadezinha simples de 6.500 habitantes, e o museu atrai cerca de 17 mil visitantes por ano.
Warhol nunca foi à Eslováquia e costumava dizer que vinha "de lugar nenhum", mas Bycko insiste que suas origens rutenas influenciaram tanto Warhol, o homem, quanto seu trabalho. A influência teria sido especialmente das imagens religiosas e do catolicismo aos quais Warhol foi exposto pela mãe, Julia, católica devota cujo "livro de cantos" em cirílico está no museu.
Bycko vê o museu Warhol como parte de um renascimento cultural ruteno que se seguiu à Revolução de Veludo, em 1989. Em uma região de fronteiras que se deslocavam, tendo sido repetidas vezes redesenhadas em função de guerras e ocupações, os rutenos avançaram muito longe a partir de suas raízes em vilarejos rurais.
O próprio Bycko encarna essa adaptabilidade. Crítico de arte, educador e escritor, Bycko também é músico e possui uma coleção de cem guitarras, incluindo algumas que pertenceram a John Lee Hooker e Eric Clapton. Ele continua a ser ruteno orgulhoso de suas origens, chegando a insistir que existe gênero musical chamado "blues rutenos".
Em um momento em que o mundo constrói muros mais altos e procura criar fronteiras impenetráveis, é importante recordar os benefícios de um caldeirão cultural. Em um tempo em que "multiculturalismo" passou a ser visto como termo pejorativo para indicar diversidade cultural, é importante recordar que os indivíduos e as sociedades podem ser muitas coisas ao mesmo tempo.
No século 21, é impossível criar ilhas seguras de nacionalidade -se é que isso foi possível em qualquer tempo. Assim, os rutenos talvez possam nos fazer recordar que é possível construir nosso sentido de quem somos a partir de muitos componentes e influências distintos, quer vivamos em cidades cosmopolitas ou na isolada periferia da Europa. Em um mundo em que a tecnologia e as comunicações aproximam mesmo os povos mais distantes uns dos outros, poderíamos nos sair melhor se abraçássemos a perspectiva da diversidade e transformação cultural, em lugar de tentar nos esconder dela.
E talvez não exista melhor exemplo que o de Andy Warhol, o garoto imigrante "de lugar nenhum" que cresceu cercado por livros de canto, ícones e igrejas de madeira e acabou por celebrar o advento da cultura de consumo onipresente, muito tempo antes de qualquer pessoa ter ouvido falar em globalização.
Matthew Carr é autor de "Blood and Faith: The Purging of Muslim Spain". Seu blog é infernalmachine.co.uk. Envie suas mensagens para o e-mail intelligence@nytimes.com



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